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Considerações Sobre a Psicologia Da Arte E a Perspectiva Narrativista

In: Philosophy and Psychology

Submitted By alicelima
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Considerações sobre a psicologia da arte e a perspectiva narrativista

Considerations on the psychology of art and the narrativist perspective

Consideraciones sobre la psicología del arte y la perspectiva narrativa

Karina MoutinhoI; Luciane De ContiII

I Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Pesquisadora do Centro de Estudos da Narrativa – CENA e do Laboratório de Análise Interacional e Videografia (LAIV) da UFPE
II Professora da Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Líder do Grupo Narrativa, Cultura e Desenvolvimento da UFPE. Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado sanduíche na Université de Nantes, França

Endereço para correspondência

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RESUMO

O estudo das produções artísticas há muito tem interessado à psicologia, e as reflexões desenvolvidas por Vigotski são importante referência para o entendimento de comportamentos estéticos a partir de uma psicologia objetiva e social. Considerando a relevância de suas contribuições, o presente artigo tem como objetivos: (1) apresentar os principais embates da psicologia e da estética no início do século XX à luz do pensamento de Lev Vigotski apresentado na obra "Psicologia da Arte", destacando-se a proposição teórico-metodológica feita pelo autor para entendimento das produções artísticas à época; e (2) discutir as contribuições desta proposição para a perspectiva narrativista, destacando as ideias do autor para o fortalecimento desta área que se dedica à abordagem do humano para além do raciocínio lógico-abstrato.

Palavras-chave: Vigotski; perspectiva narrativista; arte.

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ABSTRACT

The study of the artistic production is an issue which has interested psychology for a long time. Vygotsky´s work is an important reference to reflect upon esthetics behavior derived from object and social psychology. Considering his relevant contributions, this article has the following objectives: 1) present the most important discussions related to psychology and esthetics in the beginning of the 20th century based on Lev Vygotsky and his " art psychology", highlighting the theoretic-methodological proposal suggested by the author to the artistic productions of his time; 2) discuss the contributions of this proposition to narrativist perspective, reinforcing Vygotsky’s ideas to empower this area dedicated to the human approach which goes beyond the logical-abstract thoughts.

Key words: Vygotsky; narrativist perspective; art.

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RESUMEN

El estudio de las producciones artística desde hace mucho tiempo representa un área de interés para la psicología, donde las reflexiones realizadas por Vigotski se constituyen en un importante punto de referencia para la comprensión del comportamiento estético a partir de una psicología objetiva y social. Considerando la importancia de estas contribuciones, este artículo tiene por objeto presentar las principales divergencias de la psicología y la estética en el siglo XX a la luz del pensamiento de Lev Vigotski tomando como referencia su libro "Psicología del arte", en el que da a conocer su propuesta teórico-metodológica para el entendimiento de las producciones artísticas de la época; así mismo, busca discutir las contribuciones de esta propuesta hacia la perspectiva narrativista, destacando las ideas del autor en el fortalecimiento de esta área dedicada al abordaje del ser humano más allá del raciocinio lógico-abstracto.

Palabras-clave: Vigotski; perspectiva narrativista; arte.

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Desde a década de 80, uma orientação teórico-metodológica reconhecida como Perspectiva Narrativista vem progressivamente se desenvolvendo, a partir da integração entre áreas como a antropologia, a filosofia, a linguística e a teoria literária (Brockmeier & Carbaugh, 2000; Lightfoot, 1997; Riessman, 2001). Para os estudiosos desta orientação, construir conhecimento é traçar interpretações, e as narrativas são formas culturais privilegiadas nas e pelas quais as pessoas interpretam o mundo e lhe dão uma ordem temporal, significando-o. Mais especificamente, consideraremos como narrativa uma definição ampla apontada na literatura, segundo a qual a narrativa é constituída por "personagens e um enredo que evolua ao longo do tempo" (Brockmeier & Harré, 2003, p. 526).

O interesse de Vigotski por questões relacionadas à literatura, ao teatro e à arte foi muito importante para conduzi-lo à psicologia. A mais conhecida de suas obras que percorre estes campos, "Psicologia da arte", representa um longo investimento do autor, iniciado quando era jovem, aos 20 anos (Van der Veer & Valsiner, 2001). A perspectiva narrativista aproxima-nos desta obra clássica de Vigotski, originalmente finalizada em 1925 e ainda pouco discutida com maior profundidade no Brasil em sua relação com a emergência de perspectivas contemporâneas que têm a narrativa como foco de interesse.

"Psicologia da Arte" pode ser inserida no que Minick (2002) considera a primeira fase de desenvolvimento do pensamento de Vigotski. Nessa fase ele estava preocupado, entre outros aspectos, em definir um objeto de investigação psicológica que não fosse nem objetivista ao extremo – representado na época pelos estudos do comportamento – nem subjetivista – exemplificado em "Psicologia da arte" como estudo voltado à consciência. Vigotski (1925/2001) propunha que para se obter uma ciência psicológica verdadeiramente unificada teria que ser desenvolvido um sistema de conceitos e teorias que superasse o isolamento conceitual de comportamento e consciência. A crítica do autor se centrava na visão dualista do fenômeno psicológico, que localizava mente e comportamento em lados opostos ou como dois polos de um fenômeno. Sua busca era por uma visão monista de ciência, em que "consciência e comportamento fossem conceitualizados como aspectos de um todo unificado" (Minick, 2002, p. 35). É dentro desse universo de reflexões acerca do fenômeno psicológico e seus métodos de investigação que se insere a obra do autor debatida no presente artigo. Nosso propósito aqui é discutir mais detalhadamente alguns dos aspectos do pensamento de Vigotski (1925/2001) nessa obra, os quais, em nossa concepção, apresentam uma importante relação com algumas premissas centrais da perspectiva narrativista. Assim destacaremos as ideias do autor quanto à proposição do método que visa à superação de uma psicologia sem arte e de uma arte sem psicologia, em específico acerca do método de análise da fábula. Por fim, faremos uma reflexão sobre a contribuição da obra para o desenvolvimento de estudos que tomam a perspectiva narrativista como referência em Psicologia.

A PROBLEMÁTICA E O CENÁRIO TEÓRICO-METODOLÓGICO

"Psicologia da arte" traz uma preocupação particular de Vigotski (1925/2001) com a psicologia e a estética (usada neste texto e pelo autor como sinônimo de arte). Para ele, ambas necessitam de aprofundamentos específicos e complementares: as artes, de um lado, têm carecido de fundamentações psicológicas, enquanto a psicologia tem deixado de responder satisfatoriamente a questões complexas sobre o comportamento estético. O que existia até o momento, para o autor, não respondia de forma objetiva e contundente a questões recorrentes, que envolviam, por exemplo, a investigação objetiva da experiência estética. O autor faz, assim, análises sobre a fábula, a tragédia e a comédia, e propõe o que chama de um método objetivo de análise da obra de arte. Em nosso estudo, detivemo-nos especificamente na fábula, pela peculiaridade de ser reconhecida no mundo das artes como a forma mais simples de produção artística e na qual o autor se deteve extensamente na obra. A apresentação deste método é antecedida por dois momentos. No primeiro Vigotski apresenta os embates que caracterizam os problemas enfrentados pelas artes e pela psicologia e que distanciam estas áreas de conhecimento, impedindo a construção de uma psicologia da arte objetiva; em um segundo momento apresenta as explicações psicológicas vigentes à época em relação às produções estéticas produzidas por estudiosos da linguistica, da psicologia ou mesmo da literatura. O autor expõe suas considerações sobre os limites destas explicações e então apresenta um novo método de análise das fábulas.

Quanto aos problemas que geraram o hiato entre Artes e Psicologia, Vigotski (1925/2001) destaca como um deles a delimitação entre a psicologia social e a individual para entendimento das questões da arte, pois ambas eram vistas como distintas. Vigotski (1925/2001) critica a posição de separação entre as duas, pois considera a constituição social da individualidade, e se o indivíduo é social desde seu nascimento, então esta delimitação entre as psicologias já não faz nenhum sentido1 e o objeto da psicologia social passa a ser o próprio indivíduo. Não obstante, o autor destaca que as concepções comuns à época não partilhavam deste entendimento, de forma que ambas as psicologias precisavam ser revistas e novamente conceituadas.

Dois erros eram observados no que tange ao entendimento da psicologia social. Por um lado, propunham-se como seu objeto os mitos, os costumes e, no caso em questão, a arte. Vigotski (1925/2001) já se contrapunha, afirmando que estes não poderiam ser objetos da psicologia, mas da antropologia. A psicologia social, no seu entender, deveria focar o "psiquismo social", e não a ideologia. Por outro lado, no extremo oposto, têm-se aqueles estudiosos que entendem a psicologia social como derivada da psicologia individual e, deste modo, secundária. Nestes casos, a sociedade era tomada como reunião de pessoas, multidão, e a relação entre os psiquismos individuais, como uma soma destes, justificaria a psicologia social - um equívoco típico da chamada psicologia social não marxista. Esta forma de entendimento de ambas as psicologias chama a atenção para a indefinição de uma meta clara para a psicologia social, uma vez que esta se confundia diante de seu objeto de estudo (a ideologia ou o indivíduo). A conexão entre a psicologia social e a individual é o que de fato interessava a Vigotski (1925/2001), mas não pela confusão estabelecida pelos estudiosos na época. O autor não compartilhava da ideia convencional de que a psicologia social fosse diferente da individual e, mais ainda, que a psicologia social devesse se confundir com um estudo de ideologias e/ou uma consequência do estudo do indivíduo (sobre "o que ele tem na cabeça"), tomando-se o contexto cultural como metafísico. Sua justificativa estaria no entendimento de que o indivíduo é social desde o início, posição reafirmada por ele no Manuscrito de 1929 (Vigotski, 2000). Vigotski (1925/2001) então esclarece que uma problemática particularmente importante é a distinção entre a psicologia subjetiva e a psicologia objetiva da arte, e é a partir desta problemática que ele define o método apresentado ao longo de seus estudos.

Na psicologia subjetiva da arte, alguns dos estudos realizados buscavam responder a questões relacionadas à emoção estética, como, por exemplo, a identificação das emoções preferidas por um espectador em relação a uma obra. Tanto as respostas quanto o próprio objeto de estudo (as emoções) eram considerados enigmáticos por Vigotski (1925/2001). A superação do subjetivismo decorrente teve nos estudos experimentais uma alternativa, porém as respostas fornecidas por estes estudos foram insatisfatórias. A reflexologia fundamentou-se na mensuração de respostas orgânicas do artista: após perguntar-se, por exemplo, "Como você reagiria diante da traição de uma pessoa amada?", aferia-se sua pressão, sua respiração. O autor considerou esta objetividade como extremamente limitada, e apontou três erros deste tipo de investigação: (1) seu enfoque estava no resultado, no prazer estético, o que ele chama de começar pelo fim; os resultados obtidos podiam ser meramente ocasionais e fortuitos, decorrentes de uma situação específica de mensuração; (2) errava-se também quanto à emoção identificada, pois não era possível precisá-la como emoção estética ou emoção comum; (3) finalmente, a emoção estética era por vezes entendida como a soma de emoções particulares. Como exemplo de estudo que incorre nestes erros, o autor mencionou a reflexão feita por Grigóriev (1924, citado por Vigotski, 1925/2001) sobre o coreu2, que afirma este servir para expressar ânimo e dança. Vigotski não aceita esta afirmação e contra-argumenta citando o poema de Púchkin (1923, citado por Vigotski, 1925/2001), que diz: "rasgando-me o coração com um ganido queixoso ou um brando" (p.20). Aqui o coreu já não expressa ânimo, mas angústia e desespero.

Vigotski (1925/2001) assumia então a necessidade de propor um novo método de investigação da psicologia da arte, que superasse as limitações teórico-metodológicas antes apontadas. Para tanto, destacava como fundamental considerar: (a) que a sociologia não permite uma compreensão integral das leis que regem os sentimentos numa obra de arte; a psicologia social, sim, pode viabilizar estas respostas, sendo considerado o indivíduo como ser social desde sua origem; e (b) a psicologia objetiva também deve ser o caminho para a psicologia da arte, mas, para tanto, não pode insistir em investigações que focalizem isoladamente as emoções do criador e do espectador. A saída para este impasse seria, de acordo com o autor, ter como foco a análise da forma, pois somente esta permitiria integrar autor, obra e espectador. Ou seja, Vigotski chama a atenção aqui para o fato de que a unidade de análise de uma psicologia objetiva da arte não pode estar nem na obra nem somente no autor ou espectador, mas na interconexão dessas esferas, possibilitada, segundo ele, através da forma. Esse é um dos aspectos que ele visa demonstrar na análise da fábula.

A FÁBULA E O USO DE ANIMAIS

A proposição de método feita por Vigotski (1925/2001) é antecedida por apresentações e críticas aos mais consistentes sistemas psicológicos da arte existentes à época. O autor interessava-se especialmente pelas teorias de Lessing e de Potiebnyá3 a respeito de um tipo específico de forma literária: a fábula. Estas foram escolhidas por serem consideradas, naquela época, como as mais consistentes e acabadas teorias a respeito das fábulas, e por terem as próprias fábulas como foco de análise. No seu intuito de estabelecer uma psicologia objetiva da arte, a fábula se presta como excelente objeto de estudo, uma vez que ela é, para alguns teóricos, a forma literária mais elementar e básica para a formação de outras obras mais complexas. Para Vigotski (1925/2001), ao se conhecer como um estudioso compreende a fábula, por detrás de sua explicação se evidencia a sua concepção de arte. Por esta razão a fábula é escolhida como objeto de avaliação crítica dos sistemas psicológicos vigentes, para a superação desses sistemas através de uma proposição teórico-metodológica para uma psicologia objetiva da arte.

Mas o que é uma fábula? Para Lessing, por exemplo, uma fábula é uma narrativa que trata de uma afirmação de caráter universal, mas aplicada a um caso em particular; é a ilustração de uma ideia geral. A fábula é tomada como objeto da filosofia e da retórica, mas não da arte. Já para Potiebnyá, a fábula é uma resposta rápida a uma questão, uma forma adequada às relações do cotidiano, explicitando as contradições do dia a dia. Ele admite a fábula como basilar à poesia e a outras formas discursivas, que possuem sempre, em algum momento, partes correspondentes à fábula. Embora os dois autores evidenciem maneiras diferentes de conceber a fábula, uma vez que para um ela pertence exclusivamente ao mundo da prosa e nada teria de arte, enquanto para o outro, ao menos em parte ela pode ser encontrada na poesia, ambos têm em comum uma ideia inconteste: rejeitam a fábula em poesia. Para que um texto possa ser considerado como fábula ele tem que assumir a forma de prosa! Assim, Lessing e Potiebnyá admitem como exemplos de fábulas os textos de Esopo e Tolstói, enquanto os escritos poéticos de La Fontaine e Krilov4 são tidos como não constituintes desta forma literária. Tome-se como exemplo a fábula em prosa de Esopo, "A mulher e a galinha" (Potiebnyá, 1894, citado por Vigotski, 1925/2001).

Uma viúva tinha uma galinha que botava um ovo por dia. "Vou experimentar alimentá-la de cevada, quem sabe ela não bota dois ovos por dia?" -, pensava a patroa. Dito e feito. Mas a galinha engordou e deixou de botar até mesmo o seu ovo por dia. Quem por avareza quer mais sem nada fica (p.111).

Aí já se tem uma discussão que a princípio parece tão típica do mundo das letras, da linguística ou filosofia da linguagem, mas que se abre como oportunidade para a Psicologia. As concepções de Lessing e Potiebnyá guardam em comum mais que uma rejeição à fábula em poesia. Para Vigotski, ambos adotam sobre a fábula uma psicologia do pensamento lógico. A fábula em prosa é analisada à luz de um raciocínio formal produzido exclusivamente pelo seu autor. Assim se tem a exclusão dos elementos sociais relativos a uma produção humana e, mais ainda, de outro tipo de "raciocínio não lógico", ou psicologia da arte, que possa estar imbuída na fábula. Admite então Vigotski (1925/2001) que "A meta consiste em demonstrar que a fábula pertence integralmente à poesia e que a ela se estendem todas as mesmas leis da psicologia da arte que podemos, de modo mais complexo, verificar nas formas mais superiores de arte" (p. 108). Para tanto, analisa os critérios utilizados por Lessing e Potiebnyá para justificar a fábula como prosa, verificando sua pertinência e ainda os aplicando à fábula como poesia. Vigotski (1925/2001) "desconstrói" os sistemas psicológicos vigentes nas artes, para proposição de uma fundamentação teórico-metodológica particular.

A alegoria, o uso de animais, a moral e a narração são os elementos de construção da fábula utilizados por Lessing e Potiebnyá. Vigotski (1925/2001) realiza suas análises da fábula em poesia tomando exatamente estes mesmos elementos em consideração e apontando as singularidades de cada um destes no que se refere às fábulas em prosa e em poesia. Tomemos um destes elementos, o uso de animais, para explicitar o caminho utilizado pelo autor para atingir o objetivo anteriormente descrito.

Diversas são as justificativas para que os personagens comumente utilizados nas fábulas sejam os animais. Dois são os argumentos apresentados por Lessing e Potiebnyá. O primeiro destes é que os animais evocam imagens precisas sobre seu caráter. Por exemplo, quando se fala em lobo em algumas fábulas, sabe-se que este representa um homem forte. Se ao invés de lobo fosse mencionado um homem, seria necessário fazer uma descrição de seu caráter para que na fábula se expressasse a ideia necessária ao personagem. Uma crítica direta faz Lessing ao movimento absolutamente inverso visto nas fábulas em poesia. La Fontaine, com frequência, descreve os animais com características de personalidade, como no caso em que define em três versos o caráter de uma raposa. Para Lessing, isto é uma violação das características de uma fábula, uma vez que a utilização de animais serve para, com uma palavra, já se suprimir a descrição de um objeto e a interpretação prevalecer sobre a moral. O segundo argumento diz do entendimento de que os animais permitem eliminar o efeito emocional sobre os leitores, mantendo assim o foco sobre a moral ou sobre a resposta a uma questão, propósito da fábula que é defendido por Potiebnyá e que a restringe ao mundo da retórica. Os animais são necessários para embotar as emoções, para gerar o isolamento artístico. No caso da fábula em poesia, a diferenciação quanto ao uso de animais é exatamente o que a aproxima das chamadas formas superiores de arte. A descrição dos heróis faz apelo a um "forte colorido afetivo da nossa relação com eles" (Vigotski, 1925/2001, p. 120). Assim, os autores esperam gerar no leitor uma afetividade que possa ser dirigida aos personagens. Outro uso típico dos animais na fábula em poesia está na possibilidade de eles permitirem um isolamento da realidade, necessário à impressão estética. No caso da fábula em prosa, como a de Esopo sobre a viúva e a galinha, não é possível distinguir se este é um caso real ou literário, e esta falta de definição dificulta o efeito estético da obra. Outro ponto destacado por Vigotski (1925/2001) para o uso de animais na fábula em poesia está nas ações que eles desenvolvem em sua vida, não interessando, assim, o caráter do herói. Como exemplo cita a fábula de Krilov, do cisne, do lagostim e do lúcio. Colocados juntos para puxarem uma carroça, ilustram as consequências da inexistência de acordo entre os pares em uma dada situação, uma vez que o cisne voa, o lagostim anda para trás e o lúcio nada.

Voltemos, pois, ao objetivo apresentado por Vigotski (1925/2001) sobre a aplicação dos elementos da psicologia da arte nas fábulas em prosa e em poesia. As diferentes concepções sobre o uso de animais até então apresentadas (tanto quanto as demais que envolvem a alegoria, a narração e a moral) mostram que a fábula em poesia apresenta características semelhantes às mais complexas obras literárias. Assim, ela contém elementos originários da lírica, da epopeia e do drama, sendo seus heróis semelhantes a todo herói épico e dramático. O isolamento da realidade, o apelo emocional, a importância do modo de ação de cada personagem, especificamente no que se refere ao uso de animais, são características comuns a todos os personagens da literatura. No que tange à Psicologia, Vigotski (1925/2001) propõe que os mesmos elementos sejam entendidos não mais sob o viés do intelectualismo, mas como exemplos de uma psicologia que integra autor, obra e espectador. Assim, atrelando esta análise àquelas feitas sobre os demais elementos, afirma que a fábula pertence igualmente à poesia, sendo submetida às mesmas leis da psicologia da arte que ele propõe. O foco volta-se então ao método analítico.

O MÉTODO E A CONTRADIÇÃO

Para Vigotski (1925/2001), a contradição vem a ser a base psicológica de toda a fábula em poesia, visualizada através da análise da forma. O método analítico objetivo é apresentado por ele como alternativa para superar dois problemas básicos: o excessivo subjetivismo existente nos sistemas propostos à época e a contínua análise feita sobre o autor ou sobre o espectador da obra, sendo a Psicologia construída a partir de informações isoladas obtidas de ambos. Uma das proposições de análise feitas por ele contempla os estudos sobre a fábula em poesia, especialmente um conjunto de escritos de Krilov. Nestas análises, o autor focaliza todos os elementos antes mencionados, como a narração, a alegoria, o uso de animais e a moral, mas, desta vez, com um sentido particular à fábula em poesia. O ponto principal de análise de cada um destes elementos é a contradição presente nas fábulas analisadas.

A contradição é condição indispensável à elaboração da fábula em poesia e a análise da fábula sempre é feita em dois planos, a serem apresentados simultaneamente pelo mesmo personagem da fábula, que ora apresenta um, ora apresenta outro. Considere-se a fábula em poesia de Krilov, "A cigarra e a formiga", citada por Vigotski (1925/2001):

"Ah então tu..." (A formiga se prepara para derrotar a cigarra.)

"Despreocupada

Passei o verão inteiro cantando" (A cigarra responde fora de

[propósito, mais uma vez lembra o verão).

"Estiveste sempre cantando? Isso é coisa séria:

Então agora dança!" (p. 150).

Os planos que se sucedem nesta fábula consistem na alegria e na despreocupação da cigarra seguidas por sua infelicidade, assim como na melancolia, que é substituída pela leveza. Quando se intensifica um sentimento, logo emerge o seu oposto. As perguntas feitas pela formiga, as quais lembram a atual desgraça da cigarra, são imediatamente sucedidas por uma narração que provoca um sentimento oposto. Para Vigotski (1925/2001), esta duplicidade e esta contradição de sentimentos são exibidas em seu apogeu através da ambiguidade, observável em algumas palavras da fábula, como aquela com a qual finaliza Krilov: "dança". Nesta palavra o autor refere-se ao mesmo tempo ao comportamento constante da cigarra de aproveitar a vida cantando e, no outro plano da contradição, denota que a cigarra "morre", numa catástrofe final.

Aqui se tem uma proposição que estaria presente na continuidade de seus estudos: o interesse pelo processo, pela dinâmica de transformação e emergência do novo, que, neste caso, refere-se às experiências afetivas vividas pelo leitor a partir de uma mensagem. Esta dinâmica aplicada por ele na análise das fábulas fundamenta-se na dialética hegeliana de "tese-antítese-síntese". Note-se como a solução da fábula (no caso da formiga e da cigarra, a catástrofe da fábula se faz no "agora dança") vai além da situação inicial (a cigarra cantando e a formiga trabalhando durante o verão) e da situação subsequente (a cigarra com fome e frio e a formiga aquecida e em descanso, no inverno). O que poderia ser tomado como discrepância, cria um novo sentimento, uma nova qualidade psicológica no leitor (ver também Van der Veer & Valsiner, 2001).

Para Vigotski (1925/2001), a contradição marca a fábula em poesia e é com ela que mantém o interesse do leitor, demonstrando assim que a forma poética permite interconectar autor, obra e espectador. Conclui que a fábula constitui o germe da lírica, da epopeia e do drama. Em função de sua narrativa poética, ela permite ao espectador reagir sentimentalmente ao texto que constitui.

DA PSICOLOGIA DA ARTE ÀS PERSPECTIVAS NARRATIVISTAS

"Psicologia da arte" traz um conjunto de desafios que foram progressivamente debatidos na psicologia e que se articularam a outras discussões feitas ao final do século XX, especificamente aquelas relativas à perspectiva narrativista. Com ela, ciências, arte e filosofia convergiram para reflexões e proposições dedicadas às mais diversas problemáticas, norteando estudos variados em psicologia nos dias atuais. Como vimos, Vigotski (1925/2001) propõe a contradição como foco do método objetivo de análise do fenômeno psicológico, em que autor, obra e espectador devem estar integrados. Para demonstrar esse método, ele elege a fábula. Podemos pensar que a discussão estabelecida pelo autor acerca da fábula pode ser estendida para as proposições atuais acerca da narrativa. Se para ele a fábula se prestaria como excelente objeto de estudo, uma vez que ela é, para alguns teóricos, a forma literária mais elementar e básica para formação de outras obras mais complexas, poderíamos dizer que, para a perspectiva narrativista, a narrativa estaria nesse nível de formulação e a fábula seria um gênero discursivo desta. Sarbin (1986, p. 8), por exemplo, propõe que a psicologia adote a narrativa como metáfora de base, pois para ele "os seres humanos pensam, percebem, imaginam e fazem escolhas morais de acordo com estruturas narrativas".

Outro aspecto que Vigotski (1925/2001) destaca nessa obra em sua reflexão acerca da fábula é que a força persuasiva desta estaria em sua configuração poética, e não em seu formato de prosa. Como destacamos antes, ele critica os autores que defendem a fábula em prosa, porque, nessa definição, eles adotam sobre a fábula uma psicologia do pensamento lógico, dela excluindo uma psicologia da arte. O autor defende que à fábula devem se estender todas as leis psicológicas que existem no drama, no romance, no poema. A este respeito, Van der Veer e Valsiner (2001) salientam a importância da escola formalista de literatura e crítica literária por ter fundamentado os estudos do autor para proposição do método objetivo. Entre os formalistas podemos destacar Todorov, que se esforçou por definir a narratologia como um campo de saber (De Conti, 2004; Vieira, 2001); porém a postura analítica defendida pelos teóricos da Narratologia é bastante criticada pelos estudiosos da perspectiva narrativista que analisam as ideias de Ricoeur (1994; 1995). Estas críticas se pautam principalmente no argumento de que, ao enfatizarem a estrutura narrativa somente em seus aspectos linguísticos ou funcionais, os formalistas estariam deixando de lado a dimensão mais rica da narrativa, a produção de sentidos, pois os seres humanos organizam temporalmente a sua experiência construindo sentidos a respeito dela, por meio da elaboração de enredos que fornecem articulações e uma coerência mínima aos muitos episódios vivenciados e protagonizados pelos atores sociais.

O que nos parece importante salientar aqui é que se a forma (neste caso, através da contradição), de certa maneira, impõe ao espectador possibilidades de interpretação da obra, os efeitos poéticos dessa obra vão além de sua forma. Como ressaltam Van der Veer e Valsiner (2001), a relevância da análise proposta por Vigostki em "Psicologia da arte" estaria na dinâmica em que uma experiência afetiva é gerada pela estrutura da mensagem. Neste sentido, podemos dizer que uma análise puramente formal da fábula, caso a tomemos em seu sentido restrito, por exemplo, em sua estrutura linguística, excluiria a sua dimensão humana enquanto produção de sentido e de significado. Este talvez seja um dos aspectos que aproximam a "Psicologia da arte" das perspectivas narrativistas, mas que também a distancia delas. Isto porque as perspectivas narrativistas, se por um lado destacam que a forma impõe certas possibilidades simbólicas para a composição narrativa, por outro salientam que é preciso ir além da forma para resgatar a dimensão humana nos estudos psicológicos. Isto seria possível através da análise da produção de sentido, unidade de análise proposta por Vigotski posteriormente (Vigoski, 1934/1996; 1930/1998), o que não exclui a forma, mas vai além dela.

Esta reflexão sobre a produção de sentido e de significado é crucial na perspectiva narrativista e pode muito bem ser demonstrada pela análise desenvolvida por Ricoeur (1994; 1995) em sua obra "Tempo e narrativa", importante referência nas teorias narrativistas (Josselson, 2004). Nela, o autor enfatiza a narrativa enquanto produção humana e, neste sentido, poética. O autor também afirma que a narrativa só poderá ser compreendida se a concebermos como uma organização temporal da experiência, cujos elos se dão pela regência de uma causalidade semântica imposta ao narrador em seu ato de narrar. Critica também as teorias, vigentes na época, que analisam a narrativa somente em seus aspectos estruturais, quer linguísticos quer funcionais. Nessa formulação de Ricoeur (1994; 1995) podemos ver os dois aspectos salientados por Vigostski (1925/2001): a narrativa (a fábula) enquanto poesia e a impossibilidade de a concebermos fora de sua dialética entre autor, obra (o texto narrativo) e espectador. Esse último aspecto pode ser mais bem visualizado na proposta de Ricoeur (1994; 1995) da Tríplice Mimesis.

Outro aspecto que merece destaque na obra de Vigostski (1925/2001) é que, ao propor o método objetivo, o autor defende que a constituição do sujeito é, desde o início da vida, absolutamente social. Para tanto, ele traz à cena os signos (no caso, a fábula como signos linguísticos), elementos constituintes destas duas esferas, indivíduo e sociedade. São os signos, tomados como fenômeno psicossocial, que diferenciam Vigotski (1925/2001) dos estudiosos da arte, que tomam a estética por ela mesma, e da psicologia, que tomam o psiquismo a partir de uma reflexão exclusiva sobre os aspectos subjetivos ou objetivos. Lembremos o que afirma Vigotski (1930/1998, p. 54): "O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura." Os sentidos atrelados aos signos têm também uma importante contribuição nesta imbricação psicossocial. Vigotski (1934/1996) esclarece que, em uma palavra, o significado constitui o elemento mais estável, enquanto o sentido é construído no contexto onde a palavra é usada, sendo, assim, fluido, dinâmico e social:

O sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência.... o significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala (Vigotski, 1934/1996, p. 125).

É exatamente quando o foco se volta para o signo e para os sentidos - e seu processo de construção -, tomados não como mensagem dissociada de um psiquismo, mas como objeto de uma psicologia onde se constituem indivíduo e sociedade, que se destaca de forma mais clara e enfática a convergência entre o pensamento de Vigotski e o de pensadores da chamada perspectiva narrativista.

Como já dito, esta perspectiva compõe um movimento que se fortaleceu no final do século XX, especialmente em seus últimos vinte anos, enfatizando a linguagem em suas práticas discursivas (Brockmeier & Carbaugh, 2000; Brockmeier & Harré, 2003; Gergen & Gergen, 2006; Lightfoot, 1997). Os estudiosos da área se interessavam por construir conhecimento através da superação de dualismos tradicionais da ciência positivista, que envolviam, por exemplo, o tratamento isolado entre psiquismo e cultura, já combatido por Vigotski (1925/2001) em "Psicologia da arte", e suas explicações passaram então a ser fundamentadas em interpretações, construídas histórica e culturalmente. Nesta forma de construir saber, a linguagem (como um sistema de signos em particular), os sentidos e a narrativa assumem lugar de destaque. No caso da linguagem, ela não mais é tomada como representativa de uma realidade a ser desvendada. Nietzche, Heidegger, Dilthey, Gadamer, Wittgeinstein, entre outros, encorpavam o conjunto de estudiosos que se contrapunham a uma ciência voltada à apresentação de respostas absolutas e propunham a construção de conhecimento como uma ação interpretativa (Lightfoot, 1997). Em linhas gerais, entende-se que, ao interpretar o mundo, as pessoas atribuem sentido a ele e assim o fazem nas e através das narrativas. Estas seriam um modo discursivo privilegiado para a construção destes significados, em face de suas características espaçotemporais (Brockmeier & Harré, 2003; Lightfoot, 1997, Ricoeur, 1994).

Sob a égide deste paradigma científico, estudiosos como Bakhtin (1929/2008), Bruner 1997a, 1997b), Polkinghorne, (1988), Ricoeur (1994; 1995) e Sarbin (1986) trouxeram contribuições variadas para tratarmos as narrativas como um caminho importante para entendermos "os textos e contextos mais amplos, diferenciados e mais complexos de nossa experiência" (Brockemeier & Harré, 2003, p. 526). Considerando a centralidade de sentidos na psicologia, Bruner (1997b) admite duas formas humanas de pensamento: a lógico-científica, que tem tido especial atenção da Psicologia e é inspirada nas questões iluministas voltadas a saber como o homem conquista o conhecimento verdadeiro do mundo; e a narrativa, através da qual organizamos nossa experiência, seja como histórias seja como razões para não fazer ou fazer as coisas, assim constituindo o que o autor chama de "psicologia popular" (Bruner, 1997a, p. 40). Essa formulação pode ser germinalmente vista na obra de Vigotski (1925/2001), quando propõe uma psicologia do pensamento lógico e uma psicologia da arte. Para Bruner (1997a), a narrativa requer quatro constituintes para sua realização: 1) ação direcionada a metas controladas por aqueles que a agenciam; 2) uma ordem sequencial, linear, que lhe caracteriza uma temporalidade inerente; 3) uma sensibilidade ao que é canônico e ao que transgride essa comunalidade; e 4) aproximação ao ponto de vista de um autor, que não pode deixar de ter "uma voz". Neste sentido, a realidade psíquica domina a narrativa e qualquer realidade que exista além da consciência daqueles envolvidos na história é colocada lá pelo autor com o objetivo de criar efeito dramático. Bruner (1997a) enfatiza que as formas narrativas tornam-se tão habituais para organizar a experiência em si, que elas guiam a vida narrativa em relação ao presente e a direcionam em relação ao futuro.

Embora linguagem, construção de sentidos e narrativas sejam pontos de destaque para as perspectivas narrativistas, não se pode falar em unicidade em termos de suas abordagens teórico-metodológicas: variadas são as definições sobre o que são narrativas, a que perguntas elas respondem sobre o fenômeno psicológico, metodologias de investigação, etc. (Bamberg, 1997; Brockmeier & Harré, 2003; Daiute & Lightfoot, 2004). Evidentemente, não se pode esgotar a diversidade de abordagens que compõe tais perspectivas, assim como as problemáticas sobre as quais se debruçam, na tentativa de construir interpretações plausíveis. O que vemos é que, com as perspectivas narrativistas, mais do que tentativas de interpretação e construção de sentidos sobre o comportamento estético, há a disposição para entender que uma das formas de organizar a vida é tomá-la como obra de arte poética, como narrativa; e construir narrativas é uma atividade que fazemos ao lidarmos com o mundo para significá-lo, seja como pessoas comuns que procuram explicações para os mais simples acontecimentos de suas vidas, seja como pesquisadores que buscam dar uma ordenação plausível ao mundo que tentamos conhecer. Avançamos, assim, como pretendia Vigotski (1925/2001), para uma compreensão psicológica da arte, para entendimento da obra de arte como uma das formas mais comuns de interpretar a vida e, reciprocamente, como uma das formas de construção de nós mesmos - como identidade, como desenvolvimento, como relação terapeuta-paciente (Bamberg, 2008; De Conti & Sperb, 2009; Feldman, 2005; Oliveira, 2006; Moutinho, 2010) ou qualquer outro fenômeno que dê conta, com esta mediação sígnica, da interdependência entre psiquismo e cultura.

REFLEXÕES FINAIS

Vigotski (1925/2001) escreveu "Psicologia da arte" tratando de suas inquietudes quanto às limitações do tratamento que a psicologia dava às produções estéticas e da arte e quanto às considerações sobre os elementos psicológicos atrelados à obra. Mais ainda, ele propôs um método analítico pretendendo abordar obra-autor-leitor. O que objetivamos neste artigo foi fazer uma apresentação mais aprofundada destas questões presentes na obra e tecer algumas considerações sobre a relação entre suas reflexões e as perspectivista-narrativistas, que orientam variados estudos na atualidade e nas quais muito se discorre sobre psicologia e um modo particular de discurso, que é a narrativa. Como sabemos, Vigotski (1925/2001) não foi um defensor das teses narrativistas, embora seus estudos tenham lançado uma forma particular de pensar e fazer psicologia que, a exemplo do turno discursivo, afastam-se da perspectiva dualista. Não nos dispusemos, neste artigo, a tratar da profundidade de sua obra, mas é inevitável pensar na continuidade de seus estudos para entender a amplitude de "Psicologia da arte" e suas repercussões nas perspectivas narrativistas.

Uma análise superficial poderia focalizar a questão da forma em seu sentido restrito; mas com um olhar mais amplo, reconhecem-se outras riquezas no pensamento do autor, como apontaram Van der Veer e Valsiner (2001), sobre sua contribuição a respeito do dinamismo processual da experiência afetiva do leitor com a obra. Esta contribuição sinaliza, por exemplo, para a aplicação da análise dialética aos estudos do desenvolvimento, que passam a ser visualizados para além dos resultados e da descrição, como viria mais adiante defender na continuidade de seus estudos (Vigotski, 1930/1998). Considerando-se outros trabalhos seus, vê-se que a eleição do signo como um elemento constitutivo do indivíduo e da cultura aproxima-o das teses narrativistas, segundo as quais signos e sentidos são construídos pela cultura ao mesmo tempo em que estes a constroem. Por sua vez, a arte, como defendia Vigotski (1925/2001), não deve carecer de explicação psicológica, porque é ao mesmo tempo fenômeno cultural e psíquico. Com as perspectivas narrativistas, esta compreensão avançou para o entendimento de que as narrativas são uma dentre outras formas de ordenar a experiência, de interpretar o mundo, de construir a si mesmo o que as torna importante fundamentação nas ciências humanas em geral (Brockmeier & Harré, 2003), e, mais especificamente, o livro "Psicologia da arte" de Vigotski (1925/2001).

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência Karina Moutinho. Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, 8º. Andar. Av. Arquitetura s/n, Cidade Universitária, CEP 50670-901. Recife-PE, Brasil. E-mail: karinamoutinho@gmail.com

Recebido em 07/10/2009 Aceito em 28/09/2010

1 A ênfase na mútua constituição entre indivíduo e sociedade pode evocar o uso da palavra "pessoa" em substituição à palavra "indivíduo", tal como faz Vigotski nos Manuscritos de 1929. Entretanto, mantivemos esta última, "indivíduo", por ser a palavra usada pelo autor na versão traduzida da obra aqui referida.
2 Coreu: s.m. pé de verso grego ou latino de uma sílaba longa, seguida de outra breve (www.priberam.pt/empresa.aspx).
3 Vigotski (1925/2001) em geral reporta-se às teorias destes autores sem especificar uma obra, excetuando-se as situações em que faz citações textuais. Por esta razão, ao longo deste texto reproduziremos esta condição implementada pelo autor, que faz menção a Lessing (1955, citado por Vigotski, 1925/2001) e Potiebnyá (1894, 1905, 1913, citados por Vigotski, 1925/2001), além de outros autores que também desenvolveram estudos sobre os referidos teóricos.
4 Não é especificada uma fonte única para as citações textuais e as análises relativas às fábulas de Krilov. A este respeito, Vodovózov (1862) e Keniêvitch (1868) são citados por Vigotski (1925/2001).

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