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Silêncio- Algures Aquém E Além Das Palavras

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Silêncio Algures, aquém e além das palavras
O
silêncio na comunicação e na prática psicanalítica e psicoterapêutica

Beatriz Horta Correia. Branco Silêncio (desenho) 2011

Isabel Botelho Psicóloga, MFaPA e MFaPP Email:isabelmbotelho@netcabo.pt Julho de 2011 1

Introdução O silêncio está presente em toda a comunicação. Esta é atravessada por ele, pontuada por ele. O que não equivale a dizer que o tenhamos adequadamente em consideração, sendo que, muitas das vezes, até hipervalorizamos, as trocas puramente verbais desconsiderando o(os) silêncio(s) como algo que se pode pôr de lado, marginalizar ou analisar à parte. O silêncio, como pausa, pode ser transcrito no texto escrito pelos símbolos gráRicos da “vírgula”, do “ponto” ou das “reticências”, mas quantas vezes não poderá assumir um valor de “ponto Rinal”, de “exclamação”, ou de “interrogação”? E começa já aqui a complexidade da sua conversão em linguagem ou, neste caso, de simbologia gráRica, como se pode constatar pela variedade de transcrições alternativas, geralmente baseadas na sua duração e assentes em diferentes códigos e símbolos gráRicos1 . Pinto o silêncio de branco ou de preto. A claridade é uma tendência para o branco, e a obscuridade uma tendência para o preto(Kandinski). Associo o silêncio à cor branca que resulta da sobreposição de feixes de luz com as cores primárias: amarelo, azul e ver-­‐ melho. E este branco silêncio faz-­‐nos transportar para a aparente leveza que resulta do cruzamento de diversos conteúdos, destilados e não-­‐ditos, ao mesmo tempo que nos remete para as possibilidades de interpretação de uma situação hiper-­‐carregada, mas contida ou incriptada (que reRlecte aquilo que não absorve, e absorve aquilo que não reRlecte). O branco”soa como um silêncio, um nada antes de qualquer começo” diz Kandinski. Mas também associo o silêncio ao preto, que representa a ausência de luz para a Rísica, uma não-­‐cor que toda a luz, todas as cores, absorve e nenhuma reRlecte, estancando a criatividade cromática. A ausência da palavra dita pode envolver também a ausência consciente da palavra pensada, num inaudível ruído de conteúdos inacessíveis, num babélico curto-­‐circuito do pensamento, como se da força gravitacional de um buraco negro se tratasse, que todos os conteúdos absorve e nenhuns devolve. E posso associar-­‐lhe a ideia de paragem, de negatividade, de inquietante peso, ou de extremo vazio. A minha escolha deste tema é suscitada pela percepção de que o silêncio é um aspecto central, não só malha entre conteúdos, ele próprio conteúdo e contentor. Não é um fenómeno marginal na nossa vida, possuindo a propriedade de multiplicador de ambiguidade e de gerador de diRiculdades na comunicação, mas ao mesmo

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As pausas na língua oral não encontram correspondência nos nossos hábitos de pontuação na escrita, e podem ser transcritos utilizando ou os sistemas de representação mais abstracta ou o uso mais intuitivo de símbolos usados na ortografia, como “,” para qualquer pausa (sintáctica) breve, “...” para qualquer pausa longa, ou //// para uma interrupção bastante longa, de acordo com o sistema GARS (usado na transcrição destinada a uma análise de sintaxe do francês oral). Outros sistemas propõem diferentes métodos, como é o caso do CHAT (Codes for the Human Analysis of Transcript) na versão italiana, que indica o uso de [#] para pausa, [##] para pausa longa, e [###] para pausa muito longa, ou do Val.Es.Co (Valencia, Español Coloquial) que propõe “/” para pausa curta (inferior a meio segundo), “//” para pausa entre meio e um segundo, “///” para pausa de um segundo ou mais, ou “(5>>)” com a indicação do número de segundos de silêncio. Ramilo, M.C. e Freitas, T.(2002). Transcrição ortográfica de textos orais : problemas e perspectivas. Encontro Comemorativo dos 25 anos do Centro de Linguística da Universidade do Porto(Actas)/org. Isabel Margarida Duarte, [et al.].Porto:Centro de Linguística da Universidade do Porto

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tempo representa uma zona sensível de oportunidade na comunicação interpessoal, e mais especiRicamente na mudança pessoal através da prática psicanalítica e psicoterapêutica. Sendo um tema já amplamente tratado, não tenho a presunção de o abordar de um novo ângulo, mas antes de procurar compreendê-­‐lo e de reRlectir sobre ele, confrontando ideias pessoais com o muito que tem sido elaborado sobre o assunto no contexto da psicanálise.

ANÁLISE SUBJECTIVA DO TEMA
“Espelho
é esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir sempre em frente sem parar, pois espelho é o espaço mais fundo que existe, onde o silêncio se desdobra em outros silêncios. Do deserto voltaria vazia, translúcida e iluminada, com o mesmo silêncio vibrante do espelho”. Clarice Lispector (Água viva, 1979)

A"inal de que falamos quando falamos de silêncio? O silêncio, diz-­‐nos o dicionário2, signiRica o estado de quem se abstêm de falar, privação de falar, taciturnidade, interrupção de correspondência epistolar, interrupção de qualquer ruído, sossego, segredo. Ao longo da vida, temos oportunidade de sentir estes e outros signiRicados do silêncio, nas mais diversas situações de comunicação, e também os encontramos na situação particular que é o encontro psicanalítico e psicoterapêutico. O silêncio em si, na sua faceta do mutismo, envolve “as coisas que se recusa dizer, ou que se proíbe nomear, aquilo que declinamos dizer, ou é proibido nomear, a discrição exigida entre certos locutores, são menos o limite absoluto do discurso, o outro lado de que estaria separado por uma fronteira rigorosa, do que elementos que funcionam ao lado das coisas ditas, com elas e relativamente a elas em estratégias de conjunto” (Foucault,1977). Mas o silêncio acarreta outras facetas para além do mutismo, e aRinal podemos dizer com Foucault que “Não há um, mas vários silêncios, e eles fazem parte integrante das estratégias que subtendem e atravessam os discursos” (Foucault, op. cit). E o que é que o silêncio contém?

A coisa mais importante na música não são as notas." Beethoven

“Alguns falam... e não dizem nada. Uns estão silenciosos...porque não têm nada a dizer. Uns estão silenciosos...para escutar. Uns estão silenciosos...de modo a não dizerem a verdade. Uns estão silenciosos...porque têm medo. Uns estão silenciosos...porque são orgulhosos. Uns estão silenciosos...e à sua própria maneira são eloquentes.” Davide Melodia (The Lord of Silence)

Ao falar de silêncio falamos de muitas coisas. Formas, signiRicados e funções. O silêncio total parece ser uma abstracção, mas ao mesmo tempo que se confunde com o nada comunicacional é tudo menos nada (o nada de signiRicado), e não sucede num sistema de vácuo. As nossas interacções são povoadas de silêncio, linguagem (verbal e não-­‐verbal), e de ruído. E nunca existe um total silêncio como o demonstra John Cage na sua peça 2 Dicionário de Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo

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conceptual “4’33’’ “, também chamada de “peça silenciosa”. Nesta performance -­‐-­‐acção experimental e conceptual-­‐-­‐na qual o instrumentista se senta ao piano e durante quatro minutos e meio não faz qualquer som, o propósito é levar as pessoas a escutar. A escutar o silêncio; ou a desmistiRicá-­‐lo. “Não existe tal coisa como o silêncio” diz Cage, em 1952, por altura da estreia em Nova Iorque. Nesta não-­‐experiência de silêncio produz-­‐se uma inversão dos papéis: o ouvinte torna-­‐se músico, pelo som que ele produz levantando-­‐se para abandonar a sala, em protesto. Do aleatório do contexto as pessoas puderam escutar, “o agitar do vento lá fora durante o primeiro movimento. Durante o segundo, as gotas de chuva começaram a tamborilar no telhado, e durante o terceiro as próprias pessoas Rizeram todos os tipos de sons interessantes à medida que falavam ou que saíam” 3 (Ross, 2010). A performance de Cage aproxima-­‐se bem daquilo que disse Marcel Marceau: “ A música e o silêncio combinam-­se fortemente porque a música é feita com silêncio, e o silêncio está cheio de música”. E se aqui o intuito passou por incluir “os sons ambientais e não intencionais num momento de atenção, de modo a abrir a mente para o facto de que todos os sons são música”, na interacção entre duas ou mais pessoas, quando uma delas se queda em silêncio há também muito mais a explorar e observar para além de assinalar a não ocorrência de palavras.

Temos silêncios que podem ser subjectivamente sentidos como totais -­‐como uma pedra que se coloca sobre um assunto, o silêncio tumular ou o exercício do voto de silêncio-­‐ e até ensurdecedores -­‐ contentores de ruído ou de múltiplas possibilidades-­‐, criadores de um cenário de intensa calma ou, por outro lado, de apreensão, solidão ou de um medo máximo. Os silêncios são de vários tipos e vêm carregados de diferentes tonalidades e emoções. Existe necessariamente silêncio na música e no discurso(tempo de pausa), e existe o silêncio na escuta -­‐ para que esta exista verdadeiramente e possa acontecer o diálogo. O silêncio está também presente na comunicação de carácter intrapessoal, como é o caso dos rituais religiosos e espirituais (oração, adoração, ...), ou da própria meditação. Porque o silêncio é também necessário à interioridade, e para dar vida à vida intrapsíquica. E estaremos certamente de acordo ao aceitar que silêncio é uma condição muito importante para que tenha lugar a reRlexão e o diálogo consigo mesmo. Mas o silêncio numa situação interpessoal, muito embora possa carregar quase sempre signiRicado, pode gerar desconforto, equívoco, ser contundentemente fracturante, e signiRicar até um desligamento, um afastamento do outro. Neste caso o diálogo, torna-­‐se num monólogo, ou ambas as velas se apagam, e ambos emudecem.

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A partitura apresenta-se em três movimentos, correspondentes a 3 páginas onde se pode ler: “1º movimento Tacet, 2º movimento Tacet, 3º movimento Tacet. E Tacet, que significa “calar-se” em latim, é um termo usado na música para indicar ao instrumentista que ele se deve abster de tocar durante todo o movimento.Trata-se de manter o silêncio pelo pianista na estreia (que se aproxima do piano, senta-se, prepara-se para tocar, levanta a mão direita, prestes a tocar a primeira nota e suspende o movimento), ou noutras edições deste singular concerto tanto pelos músicos ( os violinos e as flautas prontos a tocar...) como pelo maestro (a batuta pronta...).

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Para além de nos fornecer condições para uma eRicaz escuta, e de orientação para o outro, passo essencial numa relação empática, o silêncio pode também ressoar como desacordo, desinteresse, ou reRlectir um movimento para dentro de si, curto-­‐circuitando invisivelmente o interlocutor enquanto procura refúgio em si próprio, e nos seus temas (diálogo interno), ou se desenvolve uma muda posição de desacordo, irritação, ou de crítica passiva face ao receptor. Um silêncio que, neste caso, pode possuir uma carga de violência passiva, invisível e inaudível, de desvalorização e crítica implícita, ou de desistência... Mas que radicaliza a relação, quer por pragmatismo ou oportunismo (para atingir objectivos unilaterais, desvalorizar o interlocutor), quer por falta de coragem para comunicar a sua posição e discuti-­‐la (promover um velado evitamento do conRlito). O silêncio pode ser um sinal de sabedoria ou de eloquência (a palavra é de prata e o silêncio é de ouro), quando associado a um (saber) calar-­‐se. Como preconizava, aliás, La Rochefoucault ao dizer que era preciso “saber =icar em silêncio” -­‐-­‐ ou como é veiculado por conselhos como “Fale pouco, mas nunca pareça mudo e embaraçado...”, “Cale-­se e evite um con=lito”-­‐-­‐só que neste caso implicando que seria “civilizado” fazê-­‐lo, como sinal de prudência e tendo presente os mais variados preceitos sociais, e sentidos do silêncio (ético, estético, cultural,moral, jurídico e psicológico). No entanto, este comportamento não poderá ser só por si equacionado como sinal de inteligência emocional (mais vale estar calado...) ou de sabedoria (como na frase de Wittgenstein “deve-­se calar sobre aquilo de que não se pode falar”, ou no aforismo de Lao Tse “Aquele que não sabe não fala, aquele que fala não sabe”). Pode também reRlectir desconhecimento (aquele que não sabe não fala), ocultação (os esqueletos no armário), cumplicidade ( com o crime ou o criminoso), ou falta de ligação, ou uma vivência de vazio. Pode ser encarado como sinal de coragem -­‐-­‐ permaneço no meu silêncio, temerária ou teimosamente, apesar do que isso possa custar-­‐-­‐, fazendo o outro agir (incomodado pela tensão criada pelo próprio silêncio), ou quase sucumbir, vacilar, desistir4. E o próprio acto de silenciar o interlocutor, por outro lado, pode ser encarado como o assumir de uma posição de poder sobre o outro, retirando-­‐lhe a voz, destituindo-­‐o desse poder, ou ostracizando-­‐ o. O ser silenciado, e o assumir reactivamente a posição silenciosa no diálogo pode denotar submissividade e o acatar da posição de poder do interlocutor. Pode ainda ser visto como sinal de hipocrisia e de insegurança, ignorância e fraqueza, associado ou não a alguma astúcia, a um comportamento estratégico como se de um jogo se tratasse (Calo-­me para não levantar ondas, ou para que não perceba que estou em desacordo; ou porque me falta a coragem para dizer o que penso).

4 Veja-se a este propósito a passagem do livro de Françoise Giroux (Si je mens, 1975) que relata como o facto de Churchill ter ficado intencionalmente 3 minutos em silêncio no momento, tenso, aquando da sua confirmação como membro do governo a Lord Halifax (designado por Chamberlain para seu sucessor como primeiro ministro de Inglaterra), originou que este ultimo tivesse abdicado a favor daquele. Claramente, neste caso, mais uma suspensão da palavra do que uma ausência de voz.

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Mas poderá igualmente ser sinónimo de táctica defensiva: o calar-­‐se e Ricar em silêncio na medida em que quanto menos se disser, tal como aconselham os advogados de defesa, maiores são as hipóteses de não ser incriminado (o direito de Ricar calado como táctica de ocultação, e de indução da prudência ou de calculismo, e o não ter nada por onde se pegar; assinalado pelo provérbio árabe: “Cada palavra que tu falas é uma espada que te ameaça”). Existe ainda o mito de que o silêncio deve ser evitado ou tem de ser quebrado (por ser desconfortável), daí a tendência para ocupar o vazio deixado pelo outro, evitando essa zona de desconforto. Daí deriva, nos contextos sociais, o prestígio das habilidades diplomáticas de conversa, e da chamada “small talk”, para evitar o constrangimento. Como escreve Ferreira (2009) “A ausência da palavra pode parecer sinónimo de sombra. A palavra é sempre esperada. Em sociedade, quando não se fala, alguém se sente impelido a tomar a palavra. É impensável um encontro de duas pessoas, em que ambas se mantenham todo o tempo caladas”. Com efeito, o silêncio do outro pode ser intimidatório e deixar-­‐nos pouco à vontade, na medida em que projectamos as nossas inseguranças nesse largo contentor que o silêncio como mecanismo especular constitui. No entanto, o silêncio do outro pode ter um valor de encorajamento e simpatia e fazer-­‐nos dar largas à liberdade de expressão. E pode também ser encarado como cortesia. Polissémico e subjectivo por excelência, a sua análise depende das muitas variáveis que envolvem o episódio de silêncio, desde o comportamento verbal e não-­‐verbal do seu emissor (contacto ocular e demais sinais e expressões faciais e corporais enquanto testemunhos do estado emocional e da atitude), passando pelos cambiantes da própria relação interpessoal pré-­‐existente, até ao contexto especíRico, da vida e da comunicação, em que ele acontece. Pode ser muitas coisas e não uma só. Um enorme contentor de sinais e de signiRicados: -­‐ Sinal de luz ou de sombra? -­‐ Sinal de sabedoria ou de ignorância? -­‐ Sinal de força ou de fraqueza? -­‐ Sinal de doçura ou de amargura? -­‐ Condição de reRlexão ou condição de bloqueio (os tabus)? -­‐ Condição de escuta e de compreensão, ou situação de diálogo interno e de corte com o interlocutor? -­‐ Sinal de compaixão pelo outro ou de juízo de valor mudo? De aproximação ou de crítica? -­‐ Sintoma de calor ou de frieza relacional? -­‐ Sinal de consentimento ou de condenação? -­‐ Indicação de espaço que se dá, ou se retira? De tolerância ou de intolerância? -­‐ Sinal de disponibilidade de tempo ou de pressão? -­‐ Condição favorecedora de respiração ou de abafamento? De liberdade ou de constrangimento? -­‐ Sinal de segurança ou de insegurança? -­‐ Sinal de cortesia ou de insidiosa tirania? 6

-­‐ Expressão de omnipotência ou de impotência? -­‐ Escolha de se calar ou de calar o outro? Convite ao fazer falar, e dar largas à livre associação e pensamento, ou de cercear? -­‐ Sinal de mudo protesto, de desistência, ou de contenção, manipulação e controlo? -­‐ Situação aquém, ou além da palavra? Na comunicação em geral, nada é “mais subjetivante do que o silêncio: aquilo que não se diz, o que se guarda, segredo ou mistério, cujo conhecimento ou desconhecimento permanecerá no escuro” (Ferreira, 2009). O silêncio do emissor pode, com efeito, indicar aquilo que não consegue, não sabe, não quer ou não ousa dizer, sendo o espaço do silêncio um espaço de não-­‐dito. Pode revestir-­‐se, para o próprio, de um maior ou menor peso, e signiRicar timidez, indecisão, confusão, mentira, disfarce, armadilha, contenção, auto-­‐defesa, autoridade, manipulação, reRlexão, sabedoria,... e associar-­‐se a sentimentos de vazio, culpa, medo, insegurança, agonia, constrangimento, raiva, recusa, reserva, afastamento, superioridade, defesa, auto-­‐satisfação, serenidade... As pessoas Ricam muitas vezes em silêncio quando têm algo de pesado, diRícil, uma grande preocupação, ou até mesmo um segredo, que não podem, não querem ou não sabem como pensar ou partilhar. E como é que o silêncio ressoa no receptor? Ressoa de forma diferente consoante o nível emocional em jogo, a história comum, o assunto, o conteúdo não-­‐verbal associado e o contexto geral em que decorre a comunicação. O silêncio do receptor face à comunicação silenciosa do emissor pode revelar, entre outras possibilidades, aceitação, entendimento, valorização, se associado a atitudes de escuta e de procura de compreensão, de estabelecimento de uma relação empática, de reforço da continuação do discurso do emissor e convite para a livre associação de ideias. Ou pelo contrário representar desvalorização, agressão, perplexidade, ansiedade, bloqueio, distanciação, negação, ruptura, retaliação, silenciamento do outro ou do assunto. O silêncio é necessário à palavra, introduzindo um espaço de respiração, e eventualmente de reRlexão ou meditação. E não pode haver comunicação, diálogo, sem silêncio. Faz parte5. Mas vimos que existe uma diferença signiRicativa entre uma pausa de respiração e um silêncio que equivale a mudez. Existem diferentes graus de interrupção da fala, com diferentes intensidades, consideradas, por exemplo, no campo da linguística. Mas o silêncio não é apenas um complemento à linguagem verbal, ele tem sentido e signiRicado próprio, e pode existir em excesso, ou em falta, contrariar o que as palavras que o antecederam ou que se lhe seguem parecem dizer, numa contraposição ao dito, gerando uma situação de dissonância cognitiva.

5 “(...)as pausas, os intervalos, tudo isso é silêncio, tudo isso é linguagem. O silêncio é quando o outro começa a falar e quando eu própria digo alguma coisa e depois me calo para poder ficar saborear o que disse. Quando pronuncio as frases há um período em que se instala um silêncio em mim, em que as oiço cá dentro e elas continuam a ecoar. Através desse silêncio as palavras adquirem significado. Aí acho que quero deixar espaço para o outro. E esse silêncio é visível? Não, é audível. Sim, é visível. O silêncio tem que ver com ritmo. As palavras são som. São como notas numa pauta.” Extracto de entrevista à artista Luísa Cunha. URL: http://umalbum.blogspot.com/search/label/Entrevistas%20e%20Conversas

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Nem só positivo, nem só negativo, o silêncio é um fenómeno complexo, com uma “polaridade variável” 6 que tem sido capturada pela poesia, pela literatura, ou pela RilosoRia. Tem signiRicados religiosos, místicos e culturais como estas práticas o testemunham. E pode ser estudado, de uma diversidade de modos, apelando a uma abordagem transdisciplinar testemunhada, por exemplo, no livro editado em 1997 por Adam Jaworski, Silence: Interdiscipli-­ nary Perspectives (Studies in Anthropological Linguistics). A FilosoRia, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia e a Linguística são as áreas disciplinares que mais se têm detido sobre o silêncio. Para a linguística o silêncio é, em geral, a ausência de discurso7, ao qual se atribui diferente signiRicação pelos analistas da conversação dependendo de factores como a sua extensão, e aonde ocorre numa conversação8. Centrada na reRlexão sobre o signiRicado e impacto do silêncio na comunicação interpessoal, em geral, o meu objectivo foca-­‐se mais especiRicamente, a partir daqui, na exploração do valor e signiRicado do silêncio no contexto da prática psicanalítica e psicoterapêutica. Neste sentido, irei analisar a função, papel e signiRicados do silêncio na prática psicanalítica, considerando tanto o silêncio do paciente, como o silêncio do psicanalista ou psicoterapeuta, e o que tem sido dito sobre o assunto.

A PSICOLOGIA DO SILÊNCIO
"Aquele
que tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode convencer-­‐se de que nenhum mortal pode guardar um segredo. Se os seus lábios estão silenciosos, ele vibra com as pontas dos dedos; a traição escorre de si através de cada poro. E, assim, a tarefa de tornar conscientes os mais escondidos nichos da mente é perfeitamente possível de realizar. "

Freud (Fragment of an analysis of a case of hysteria, 1905) “Dentre de todas as manifestações humanas, o silêncio contínua sendo a que, de maneira muito pura, melhor exprime a estrutura densa e compacta, sem ruído nem palavra, do nosso próprio inconsciente” Nasio, 1987)

A bipolaridade do sentido do silêncio: um sim e um não Quando descrevemos a qualidade dos silêncios observados falamos de “silêncios gelados, pesados, opressivos ou calmantes, arrogantes ou humildes, desaprovadores ou concordantes, condenatórios ou que perdoam” (Reik, [1926]1968). Desta não-­‐exaustiva lista de adjectivos sobressaem: efectivamente, os sentidos opostos que o conceito de silêncio parece concatenar, e daqui deriva a possibilidade de interpretarmos o silêncio como um sinal de desaprovação assim como de aprovação(Reik, op. cit.) . “É como se o silêncio pudesse tomar ambos os sentidos, como se pudesse ocorrer com sintomas

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O termo é usado por Olinick (1982): ”There is a variable polarity in the course of all verbal communication between secondary process with its logic and syntax and the expression of a contrasting, phatic, relative regression of ego functions. “
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What is Silence. Glossary of Linguistic Terms.

8 São distinguidos alguns tipos de silêncio : a pausa de hesitação -- silêncio na conversa que ocorre dentro do mesmo turno--, e a pausa de comutação (“switching pause”) que é um silêncio entre turnos. Esta subdivide-se em três tipos: o silêncio atribuível (“attributable silence”), um silêncio conversacional entre turnos imputável a um participante específico, seleccionado para falar pelo orador anterior; a lacuna(“gap”), um silêncio conversacional no final de um turno numa situação em que o próximo orador foi seleccionado pelo anterior, ou nenhum dos participantes se seleccionou como próximo orador, ou o silêncio é demasiado curto para ser considerado um lapso; e o lapso (“lapse”), que é um silêncio relativamente longo entre turnos devido a nenhum dos participantes tomar a sua vez.

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positivos e negativos, por assim dizer”. Um sim, ou um não. Daí a comparação do signiRicado do provérbio latino, "Qui tacet consentire videtur"["quem cala, consente"], com a do silêncio de rejeição “com a qual uma senhora se opõe ao avanço do comportamento de um cavalheiro” e, no entanto, para ele a signiRicação contraditória do silêncio, na vida, quase nunca é confundida. Ou seja, apesar do duplo sentido imanente, teremos tendência para saber o que a outra pessoa "quer dizer" com o silêncio. Estamos perante a “face de Janus do silêncio em psicologia”. “Tal como na vida podemos ficar em silêncio com alguém, tanto se o entendemos especialmente bem, num acordo psíquico de grande alcance, ou se tal entendimento está proibido, num sinal de inimizade absoluta. Este duplo significado indica-­‐nos, ao que parece, que o silêncio em si não pode ser considerado independentemente do seu discurso oposto.” (Reik, op. cit.). Em vez de ser um meio de expressão como o discurso, o silêncio funciona como oposto do discurso. “Mas é o discurso então tão inequívoco?” pergunta-­‐se, “Quando uma pessoa fala, será que ela diz sempre alguma coisa? Não será que o discurso tão frequentemente como o silêncio serve o único propósito de ocultar os nossos pensamentos como o de expressá-­‐las? (...) Se assim for, não será surpresa para nós que, por outro lado, o silêncio possa assumir a função de expressão.” Será que pode-­‐ mos reconhecer uma singular relação antinómica entre o discurso e silêncio?9 . No berço do discurso já é embalada a expressão da ambivalência original da pulsão. Portanto, o discurso em si mesmo não é de todo inequívoco, como também não é suRiciente para toda a comunicação, como podemos concluir da necessidade de ser apoiado por gestos e mímica, ou de ser insuRiciente para expressar os nossos sentimentos e pensamentos (Reik, op. cit.). Falar como fuga ao silêncio, medo do silêncio Por outro lado a “alienação parcial da sua função original que o discurso sofreu é reconhecida pelo facto de que muitas vezes as pessoas falam porque não podem suportar o silêncio.” Esta compulsão de falar à tout prix parece evidenciar que o silêncio pode ser entendido como secretismo, para aquilo de que se procura fugir. E existe um medo do silêncio, assim como há um medo de falar. O movimento de escapada ao silêncio é bem ilustrado pelas pausas da conversa social que, por serem experienciadas como dolorosas, são preenchidas por coisas mais sem sentido, ou pela banalidade e frivolidade do dito. E é neste sentido que “as questões não expressas, que dominam as relações do homem no nível mais profundo, são audíveis, mesmo em silêncio” (Reik, op. cit.). A “prática analítica mostra que por detrás do medo do silêncio está o medo inconsciente da perda do amor. Sabemos que as tendências destrutivas, que nos são familiares como pulsões de morte, encontraram expressão no silêncio, enquanto as pulsões de amor encontraram expressão no discurso. Em face de todas as formas híbridas ainda é mantido que o discurso

9 “O discurso expressa variadamente esta antinomia : existe discurso sem sentido e silêncio significativo. A partir das pesquisas de Karl Abel estamos familiarizados com muitos conceitos os quais têm um tal sentido duplo antinómico , e Freud [no "O sentido antitético das palavras primordiais "] salientou que a característica de formação de palavras com sentidos antitéticos nas línguas clássicas é paralela ao comportamento dos sonhos e outros produtos do inconsciente na unificação dos opostos” (Reik, op. cit.).

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une, enquanto o silêncio é uma força de separação. Falar com alguém indica mais profundamente um relacionamento de amor, ficar calado com alguém indica uma expressão de aversão. Não dizemos, se estamos aborrecidos com alguém :"Não falo mais com ele “? A expressão" silêncio morto "na verdade é um pleonasmo. Se, socialmente ocorre uma daquelas longas pausas desconfortáveis nós eufemisticamente dizemos: um anjo está a passar pela sala. E é o anjo mais suave de Deus. No nível mais profundo a ansiedade do silêncio é ansiedade da morte (castração). Assim, se a fala e o silêncio nos parecem ser a expressão verbal das pulsões de vida e morte, torna-­‐se claro para nós que o silêncio veio antes do discurso, que o discurso surgiu de silêncio como a vida da morte. No princípio era o verbo, mas antes disso houve o grande silêncio 10.” Por outras palavras, “Se nós aqui estamos todos apenas "em licença de morte", então todo o discurso é apenas uma interrupção passageira do silêncio eterno” (Reik, op. cit.). O que pode signiBicar um estado de silêncio entre dois (ou mais) seres humanos ?
“Espezinhamos
tanto com as palavras na boca como com os pés na erva. Mas com o silêncio também. Emudecemos e tornamo-­‐nos desagradáveis, (...) falamos e tornamo-­‐ nos rídiculos.” Herta Muller (A terra das ameixas verdes, 2007)

Uma possível resposta a esta questão remete-­‐nos para um abrangente território: “diversos estados psíquicos e qualidades de sentimento”. Tal como já havíamos apontado atrás, a situação de silêncio evidencia “acordo, desacordo, prazer, desgosto, raiva, medo ou tranquilidade. O silêncio pode ser um sinal de contentamento, de entendimento mútuo e de compaixão. Ou pode indicar vazio e uma completa falta de afecto. O silêncio humano pode irradiar calor ou lançar um calafrio. Num momento pode ser elogioso e acolhedor; noutro pode ser cortante e desdenhoso. O silêncio pode expressar pose, presunção, snobismo, taciturnidade, ou humildade. O silêncio pode significar sim ou não. Pode ser dado ou recebido, ser dirigido ao objecto ou narcisista. O silêncio pode ser o sinal de derrota ou a marca da mestria. Quando situações de vida ou morte são atravessadas há pouco espaço para palavras. O silêncio pode ser discreto ou indiscreto. Um silêncio diplomático serve para impedir a expressão de pensamentos e sentimentos inadequados. A arte de ser diplomático combina o hábil uso do silêncio numa acção verbalizada e não-­‐ verbalizada. Assim, existe uma componente oculta de silêncio em cada verbalização. Quando é completo o silêncio é inadequado ou impossível, um gesto, trejeito ou expressão mimética serve como um compromisso entre a comunicação verbal e não verbal”. (Zeligs, 1961). O silêncio pode ainda ser “ protector, provocativo, ou envolver uma experiência partilhada, aprazível ou dolorosa”. Pode “expressar e até intensificar a empatia, ou pode expressar e até intensificar o equívoco ou os sentimentos disruptivos de raiva entre pessoas. Uma pessoa pode expressar a sua atitude defensiva, resistente, através do seu silêncio. Por outro lado, o silêncio pode ser profundamente expressivo e fortemente comunicativo”. Sobressai aqui também, o carácter dicotómico da interpretação do silêncio, ora indicando acordo, ora desacordo, “prazer ou desprazer, raiva ou amor”.

10 "A fala é do tempo, o silêncio é da eternidade."(Carlyle, em Heroes, Lect. IV) (Reik, op cit)

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E podendo ser “expressivo de um sentido de realização ou de vazio, de compaixão ou de uma ausência de sentimentos”, “quente ou gelado”, “elogioso e aceitante ou mordaz e de desprezo”, ou “dizer sim ou não”, ou signiRicar “dar ou receber”. Fica claro que o silêncio pode reRlectir muitos e variados estados de disposição e de sentimento (Lief, 1962). A sua ambiguidade nas relações interpessoais facilita mal-­‐entendidos, mas também fornece um meio por excelência para a comunicação do afecto. Os sentimentos afloram sem distorção pelas palavras o que tanto pode ocultar como revelar ( Lief, op. cit.). No contexto específico da situação de entrevista, são descritos diversos tipos de silêncio, relacionando-­‐os com outros comportamentos não verbais: o silêncio de tensão, expressando a ansiedade, o silêncio de medo, que petrifica face à situação psicologicamente ameaçadora, o silêncio de reflexão, que se sucede à intervenção ou feedback do entrevistador, e o silêncio de desinteresse, caracterizado pela perda do foco de atenção pelo indivíduo, que interiormente atingido pela situação externa, camufla a resistência (Castilho, 1995). Há também que prestar atenção àquele que Zeligs trata como o silêncio re=lexivo, que anda a par dalgumas das experiências emocionais mais comoventes da vida como sejam o estado de dor e luto, ou o estar apaixonado. A descarga de afecto, num caso, ou o sentimento de êxtase, noutro, são essencialmente processos silenciosos de internalização, uma vez que o silêncio, reforça a formação da fantasia e facilita a componente introjectiva no processo de identiRicação com objectos perdidos ou desejados. Pelo contrário, a externalização do afecto pelo discurso proporciona uma descarga em sentido oposto, com uso de energia neutralizada em vez de uma energia libidinal e agressiva. Uma pessoa “verdadeiramente dominada pela emoção reage normalmente com silêncio e não fala. Durante os períodos de depressão, apatia ou tédio existe uma aversão geral ao falar ou se mover. O silêncio e a lentidão do melancólico, o mutismo e posturalização do catatónico comunicam não-­‐verbalmente ao observador treinado ou sensível o sofrimento intrapsíquico e o retraímento autista. O silêncio e a imobilidade no histérico podem simbolizar a morte ou representar uma identificação inconsciente com uma pessoa morta.” No que toca ao processo de isolamento gerado pelo silêncio, este tende a criar um círculo fechado, com uma funcionalidade que “serve para aprisionar nos nossos pensamentos e sentimentos interiores e ao mesmo tempo, deixa de fora a percepção de estímulos externos.” (Zeligs, op. cit.) Os mecanismos do silêncio são simultaneamente voluntários e involuntários: “ Este pode ser um acto voluntário, como na preparação para adormecer, ou pode ser um processo inconsciente de protecção contra qualquer tipo de ameaça, real ou fantasiada.” Este diferenciador da vontade remete-­‐nos para a diferença entre o calar-­‐se, silêncio do que não se quer dizer, a envolver um acto de volição, e o silenciar-­‐se, silêncio do que não tem como ser nomeado, e que não o envolve (Ferreira, 2009). 11

Não se ouvir os pensamentos, através da actividade motora da fala, torna mais fácil negá-­‐los ou reprimi-­‐los. Como Loewenstein (cit. por Zeligs, op. cit.) aponta, falar signiRica comprometer-­‐se com a externalização e a percepção auditiva dos pensamentos interiores, e consequentemente, para com o conhecimento consciente da existência de certas ideias e afectos que até então eram inconscientes. Em contrapartida, estar em silêncio signiRica “estar pro-­‐ tegido dos outros e de si mesmo”. O esforço do ego para encobrir os pensamentos ou os sentimentos inaceitáveis, durante o silêncio, é de certo modo traído pelo corpo que “involuntariamente torna públicos esses mesmos sentimentos”. A nível Risiológico, o silêncio e a imobilidade servem como mecanismos protectores do corpo, inatos, realizando uma função homeostática. Por exemplo o silêncio e a imobilidade que caracterizam o estado de choque após um trauma Rísico ou psíquico grave. Nesses casos, pela perda de consciência (por exemplo, desmaio), “o ego protege automaticamente a economia corporal de conscientemente experimentar ou recordar o evento traumático e ajuda a minimizar o gasto de energia. Estes mecanismos psicofisiológicos altamente integrados protegem automaticamente o organismo contra as ameaças psíquicas ou físicas da realidade interna ou externa. Por outro lado, a níveis elevados de atenção e percepção, o silêncio liga-­‐se a uma acuidade sensorial (visual, auditiva) elevada, como uma protecção organísmica e um estado geral de prontidão” (Zeligs, op. cit). O papel do silêncio como uma manobra estratégica, agressiva ou defensiva, é também reportado Zeligs,

“tal como empregada em jogos ou na guerra ("lutar ou fugir"). E sugere alguns exemplos aleatórios: a torre "silenciosa" no xadrez; o inexpressivo silêncio do jogador profissional de poker; a vigilância do atirador durante o combate são apenas alguns exemplos aleatórios. Também o protótipo do herói do cinema, apareça ele como um vaqueiro, um Sherlock Holmes, ou um amante romântico, é invariavelmente um homem ‘forte e silencioso’.” 11 Qual é a importância que pode ter o silêncio do espaço envolvente, enquanto característica dessa realidade externa? Se pensarmos no silêncio interior surge-­‐nos, inevitavelmente, como seu contraponto, o silêncio exterior, oposto ao ruído. George Prochnik pergunta-­‐se porque é que existe tanto ruído à nossa volta, ou falta de silêncio, se tanta gente anseia por silêncio? O silêncio é um recurso natural que está a diminuir, com a cacofonia gerada por rádios, TV e música a tocar simultaneamente. Ele defende que estamos a Ricar mais ruidosos e procura as causas para a incapacidade da nossa cultura Ricar calada, “alguma coisa parece ter feito com que nos apaixonemos pelo ruído enquanto sociedade”. E ao tornarmo-­‐nos mais barulhentos, sustem -­‐com a convicção de que o ruído é um estimulante atraente, e pode ser aditivo-­‐, perdemos o contacto com as muitas dimensões do próprio silêncio,

11 A mesma atracção pelo silêncio existe no herói trágico: “O herói trágico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe corresponde: precisamente a do silêncio. Assim é desde o início. Por isso o trágico escolheu a forma artística do drama, para poder representar o silêncio ... Ao ficar em silêncio, o herói quebra as pontes que o ligam ao deus e ao mundo, ergue-se e saí do domínio da personalidade que se define e se individualiza no discurso intersubjectivo, para entrar na gélida solidão do Si-mesmo. Este nada conhece fora de si, é a pura solidão. Como há-de ele dar expressão a esta solidão, a esta intransigente obstinação consigo próprio, a não ser calando-se?” (Franz Rosenzweig, “A Estrela da Redenção” citado por W. Benjamin, A Origem do Drama Trágico Alemão)

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silêncio que a investigação sugere ser tanto terapêutico, como essencial para o homem, tal como o são os antibióticos, ou a comida não-­‐contaminada. E assim, em vez de alimentar a poluição sonora, precisaríamos de cultivar o silêncio ou, como diz, “desenvolver uma dieta de ruído mais equilibrada na qual o silêncio, e os sons que associamos a estados mentais de sossego, se tornam parte do nosso regime diário” (Prochnik, 2010). Com efeito, o silêncio exterior pode fornecer uma desejável atmosfera relaxante, numa instituição, por exemplo, para doentes ou idosos. “O silêncio no hospital, na creche, na igreja, na biblioteca, no consultório do psicanalista proporciona uma carapaça protectora que oferece calor ou produtos a diferentes níveis funcionais, simbólicos e sublimados.” (Zeligs, op. cit). Mas também há o silêncio de um grupo como sinal de respeito ou de expectativa, por exemplo num funeral, num auditório, ou numa sala de espectáculos ou de cinema. Quando se canta o fado ou, no campo de futebol, quando estamos perante o decisivo momento do penalty, ou nos momentos antes do orador falar perante a plateia. Aí, nessas e noutras situações colectivas, o silêncio parece ter a função de unir as pessoas. Também ao longo da vida, o silêncio vai tendo uma variabilidade de impactos, e uma apreciável “riqueza de significado e de influência que apenas uma pequena quantidade do seu potencial pode ser apreciado. Por que o silêncio, como o próprio pensamento, permeia todos os níveis do funcionamento humano, desde o infantil até a forma mais madura de mestria. Assim, ele fornece um meio permanente de comunicação e de descarga de afecto.” (Zeligs, op. cit.). ReRlectir sobre o calar-­‐se e o silenciar-­‐se ajuda, em suma, a compreender melhor este fenómeno no contexto da comunicação e interacção humana, sobretudo intra e interpessoal, e do da prática terapêutica.

O SILÊNCIO NA PRÁTICA PSICANALÍTICA
“Entre
o silêncio e a fala reside o domínio importante, mas negligenciado dos sons. As grandes emoções são sem palavras, mas não sem som. O pânico, a raiva, angústia e o êxtase não são expressos no discurso, mas em sons. Assim, também, é o orgasmo. Um grito involuntário, suspiro, gemido, ou riso geralmente acompanha estes estados emocionais intensos. Apesar das diferenças de afectos, estes sons exclamativos são diRíceis de diferenciar uns dos outros”

Greenson (On the Silence and Sounds of the Analytic Hour., 1961)

O que se esconde atrás de um silêncio? Jacques Lacan que concebeu o inconsciente como uma linguagem, distingue, o taceo, tacere (σιωπαω), suspensão de palavra, e o sileo, silere (σιγαω), ausência de voz, silêncio da pulsão ( A lógica do fantasma 1997 [1967] cit. por Ferreira, op. cit.). Assim, existe o “silêncio do recalque, o silêncio do que não se quer dizer, ou que é dito pelo seu contrário (palavra barrada), e o silêncio da forclusão, silêncio do que não tem como ser nomeado (vazio de palavra). No primeiro caso, a palavra pode ser falada com a quebra do silêncio. No segundo, o silêncio pode falar como exclusão da palavra. “O que não pode ser dito, o forcluído, o que está excluído, mas incluído de outra forma, porque actua, não segue o mesmo caminho do recalque e precisará de um tempo, embora não determinado, para se pronunciar ou jamais o fará. 13

Aqui o analista terá que recorrer à invenção”. Freud também terá respondido de alguma forma a esta questão (O estranho (1976 [1919]): “De onde provém a inquietante estranheza que emana do silêncio, da solidão, da obscuridade? Nada podemos dizer da solidão, do silêncio, da obscuridade senão que são esses verdadeiramente os elementos aos quais se liga a angústia infantil, que jamais desaparece inteiramente na maioria dos homens”. Maud Mannoni (1995) sublinha que a experiência traumática remete para uma angústia de abandono que invade o sujeito. Mas alerta-­‐nos, também, para que a possibilidade de reviver experiências da ordem do desamparo e da estranheza é o que possibilita a criação e a renovação (Ferreira, op. cit.). O silêncio do psicanalista existe? Se o psicanalista tem uma voz ela é também, amiúde, uma voz silenciosa. E a razão de colocar esta questão reside no facto de que, “se por vezes é verdade que o psicanalista é silencioso, às vezes até mesmo mudo, esse silêncio é, no entanto vivo, habitado pelas associações do analista.” André Green considera importante distinguir, então, “entre o silêncio como figura do vazio” e o “silêncio advindo de uma estratégia do calar”, aproximando-­‐se da distinção Lacaniana, a que aludimos atrás, entre taceo, tacere, e sileo, silere. Lembrando a recomendação de Bion -­‐-­‐ tanto quanto possível os psicanalistas devem estar sem memória, sem desejo e aproximarem-­‐se de um estado de vazio interno, para deixar surgir os pensamentos suscitados pelo paciente-­‐-­‐ realça que a sua implicação é não tanto o ser silencioso, mas a “ de mostrar-­‐se, a cada começo de sessão, tão disponível quanto possível para escutar o que o paciente tem a dizer de novo”. Colocando a questão a um grupo de colegas, Green declara que estes maioritariamente se manifestaram pelas várias razões técnicas, Riéis á regra de ouro do silêncio, tendo em comum um cepticismo quanto ao valor da interpretação enquanto mola fundamental da análise, e insistindo sobre o “silêncio da mãe” (a parte maternal, a relação fusional, o nunca vivido, o indizível) como vector de mudança. Os adeptos do silêncio defenderam, entretanto, o valor do mutismo estratégico para “deixar o analisando fazer a sua análise”. Para Green “é como se as virtudes do silêncio repousassem sobre a ideia de que este (silêncio do analista) é sinal de aceitação tácita e de comunicação infra-­‐verbal da sua parte, esse pré-­‐verbal tendo a função de catalizador que agiria invisivelmente, de tal maneira que o paciente compreenderia sózinho a significação do material comunicado” (Green, [1979] 2004). As limitações da designação de “talking cure” e o papel do silêncio no processo psicanalítico Apenas a partir de 1960 se começam a multiplicar os textos sobre o silêncio. O trabalho de Zeligs, publicado em 1961, é um marco no que respeita a este tema ao procurar alargar os conceitos psicanalíticos existentes sobre o silêncio, rever os poucos artigos até à época produzidos, e resumir o desenvolvimento do pensamento psicanalítico nesta área.

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Nesta data, pouco existia na literatura psicanalítica sobre o tema, e Zeligs dá conta que, para além das muitas referências circunstanciais na literatura analítica, apenas se podiam encontrar quatro trabalhos dedicados especiRicamente ao tema do silêncio12. Especulando sobre as razões que, até à data, faziam o tópico merecer tão insuRiciente atenção ele aponta para a distinta prioridade dada à comunicação verbal, que derivava dos primeiros métodos implementados por Freud -­‐ não só por razões terapêuticas como para fornecer um Rluxo de dados para a continuação da investigação sobre as suas recentes teorias-­‐ “concebidos para principalmente tornar o inconsciente consciente através da verbalização dos pensamentos e sentimentos reprimidos” . Desta atitude tradicional ainda subsistem resíduos no pensamento psicanalítico que podem ser ilustrados pelo aforismo: “ Se um paciente for incapaz de falar, a análise é impossível”. Se efectivamente, o primeiro paciente terá chamado à psicanálise uma “cura pela fala”( “talking cure”) a popularização da expressão acabou de certa modo por limitar e reduzir a leitura da própria essência do processo analítico. Isto, na medida em que, como explica Reik13 , o efeito do processo de análise mostra o poder das palavra e o poder do silêncio, e naquela expressão destaca-­‐se exclusivamente o poder da verbalização. O poder do silêncio que deriva do seu efeito emocional, foi até certa altura negligenciado face ao assunto do discurso na análise, evitando intencionalmente todas as questões que têm a ver com o silêncio da parte do paciente, evocando apenas as pausas que o paciente faz enquanto fala (Reik, 1968). Da fala e do silêncio

"A linguagem está situada entre o grito e o silêncio. O silêncio faz muitas vezes ouvir o grito da dor psíquica e por detrás do grito a chamado do silêncio é como um conforto”

André Green, 1977 “No princípio, era o silêncio, e no Rim, é o silêncio, no nascimento e na morte. Está fortemente presente no amor e na dor. Quanto maior a surpresa ou o espanto, menos palavras para expressá-­‐los” Ferreira, 2009

Freud pouco fala de silêncio a não ser como “protótipo de repressão”(Arlow, 1961), sendo o vocábulo por ele pouco utilizado (Ferreira, op. cit.), e são primeiramente Abraham e Ferenczi que esclareceram que “a função da fala não é apenas comunicação, mas serve também para descarregar sentimentos instintivos” e que “o silêncio representa uma defesa inconsciente contra a descarga de tais sentimentos conflituosos”(Zeligs, 1961). A primeira análise do silêncio é de Sándor Ferenczi sobre um paciente obsessivo, avarento, inibido nas suas associações e económico nas palavras que com auto-­‐ironia dizia “o silêncio é de ouro”, e a quem o psicanalista lembra a diRiculdade com o trato intestinal e lhe mostra a relação entre fezes e ouro (Ferenczi, 1992[1910]). Entre outras coisas, Ferenczi

12 De acordo com o índice de assunto e tabela de conteúdo, consultados pelo autor, do Psychoanalytic Quarterly (1932-1957), o International Journal of Psycho-Analysis (1920-1957), e no Journal of the American Psychoanalytic Association (1953-1957). (Zeligs, 1962) 13 “We recall that the first patient called psychoanalysis a “talking cure” [in English]. As significant as this expression may be, it is nevertheless not correct to attribute the effect of analysis entirely to the word. I believe it would be more correct to say that psychoanalysis shows the power of the word and the power of silence” Reik, T. (1968).

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salientou como o silêncio em tipos obsessivos era uma manifestação do erotismo anal; o paciente silencioso equiparava inconscientemente a força com a retenção de todos os sentimentos, donde nasce a comparação proposta pelo psicanalista entre o amealhamento neurótico de palavras, e o amealhamento de ouro por parte do avarento (fezes), explicando ao paciente o sentido psicológico do provérbio: “ o silêncio é de ouro porque não falar representa em si uma economia” 14. Este psicanalista húngaro referiu-­‐se à loquacidade (verbosidade) como uma forma de silêncio, e mencionou certos pacientes que falavam voluvelmente sobre assuntos sem importância e, assim, permaneciam em silêncio sobre os mais importantes (Zeligs, 1961). Esta paradoxal aproximação da verborreia ou da verbosidade ao silêncio, como se de um jogo de soma nula se tratasse, e de um passe de mágica ou de uma fumaça enquanto manobra distrativa, parece aproximar-­‐se também do conceito a que Olinick (1982) chama de comunicação fática15. O silêncio na análise é diferente de outros silêncios, tem uma qualidade única que decorre da relação especial que existe entre paciente e terapeuta, diz Arlow (Arlow, op. cit.). Com efeito, a prática analítica atesta a existência de diferentes níveis de intensidade de silêncio: “Pode-­‐se dizer que o silêncio só pode significar o silêncio-­‐estar mudo, nada mais. Mas a observação analítica contradiz mais decisivamente esta simplificação”. E diferenciar as nuances destas ocorrências psicologicamente difíceis de apreender, é um desafio para o analista (Reik, op. cit.). O silêncio na análise significa muitas coisas: é o “silêncio do paciente ou do analista, silêncio crónico ou efémero, silêncio de resistência ou de abertura do inconsciente”, que “constituí um facto analítico de primeira importância no desenrolar de um tratamento e coloca aos clínicos um problema de técnica psicanalítica, tão antigo quanto o da livre associação”(Nasio, op. cit.). No entanto, e no que diz respeito à fala e ao silêncio, temos de assinalar que, no seio do enquadramento psicanalítico, nas trocas que se desenrolam entre paciente e analista, se podem distinguir: “1. O dito do paciente, 2. O calado não-­dito e sabido do paciente, 3. O calado não-­dito e não sabido do paciente, 4. O inaudível e o nunca ouvido do paciente, 5. O dito do analista, 6. O calado não-­dito e sabido do analista, 7. O calado não-­dito não sabido do analista, 8. O inaudível e o nunca ouvido do analista.” Esta distinção vem fazer notar que o silêncio e a palavra são ”solidários e 14

Numa apresentação nas sessões científicas de 1948 da Associação Americana de Psicanálise, sobre a qual a Dra Therese Benedek dizia que era uma contribuição significativa o facto de não tratar o silêncio simplesmente como resistência, mas como sintoma, Fliess, dizia que “A teoria da "regra analítica" deve ser complementada por uma consideração do acto de falar como um meio de descarga instintiva. Em conformidade com uma observação feita originalmente por Abraham e uma consideração genética realizada por Sharpe, as seguintes considerações são apresentadas: a verbalização liberta um afecto regressivo , colateral à ideação reprimida, interferindo assim com a manutenção da repressão. O aparelho de discurso é substituído por diferentes zonas erógenas, através do qual o falar torna-se descarga excretora instintiva, as palavras tornam-se produtos de excreção, e o silêncio é equivalente ao fechamento do esfíncter”(Fliess, 1949)
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“(...) alguma comunicação destina-se a enganar, desviar, e para desinformar; desinformação como pode conduzir, no facto a um silêncio satisfeito. Assim, não são "factos verdadeiros"que são a marca registada desta partilha consumada, mas algo mais oportunístico e passageiro. Sabemos que a comunicação fática, como a logorreia de Edwin e os esforços dolorosos de Matty virados para o fazer contacto, não transmite informação cognitiva como tal, mas pretende transmitir e induzir um tom de sentimento. As mães com bebês e crianças pequenas comunicam deste modo, como fazem os amantes; também inclui muita bisbilhotice e o tipo de conversa de cocktail (Olinick, 1980b)” , a tagarelice de barbeiro, ou as palavras dos pastores ou pessoas que acompanham os enlutados nos funerais (o que se diz a eles é muitas vezes menos importante do que como é dito e por quem: um tom de voz suave hipnótico é preferido).Olinick (1982). O Webster's Third New International Dictionary define fático como "empregando ou envolvendo a fala para o propósito de revelar ou partilhar sentimentos ou estabelecer uma atmosfera de sociabilidade e não para comunicar ideias ...", mas Olinick (1982), vai buscar o termo carregado de referências etnológicas a Weston LaBarre (1954), que por sua vez, o tomou emprestado de Malinowski (Ogden & Richards, 1946).

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conjuntos em cada parceiro”, e ainda que “se a palavra veicula, sem sabê-­‐lo, um sentido inconsciente, o silêncio é certamente ambíguo, sendo que encobre o escondido (a reticência), o não sabido do paciente e do analista, e o inaudível e o nunca ouvido de cada um deles”. Deste modo, o silêncio pode ser “repleto de palavras silenciosas”, “estar cheio de outras coisas além das palavras” e ser o “inaudível do nunca ouvido” -­‐ negro , ou branco, auditivo (Green 2004[1979]). “O silêncio é um fenómeno omnipresente em toda a psicoterapia. Há variadas razões para o silêncio e um episódio especial de silêncio tem muitas facetas16. Portanto, se nos deixarmos ficar preocupados com a idéia de silêncio só como resistência, perdemos a oportunidade de examinar importantes nuances de um período de silêncio“(Blos, 1972). Race Rocks ou a “zona de silêncio” Volvemos a Reik (op. cit.) para evocar uma analogia por ele usada. Conta-­‐nos que em Race Rocks, na área da ilha de Vancouver em pleno oceano PacíRico, existe um lugar particular conhecido como "zona de silêncio". Esta é uma zona de catástrofes frequentes, onde naufragaram muitos barcos e perderam a vida muitos pescadores, e onde nenhuma sirene de nevoeiro é suRiciente poderosa para avisar os navios. Parece que, na opinião dos especialistas , uma "zona de silêncio" é aqui criada em certas condições de maré vazante e enchente, assim como com certas direcções de vento, na qual nem o menor som do exterior pode ser ouvido. Esta conRluência de factores explicará que os navios que se encontrem nesta zona de muitos quilómetros de extensão Riquem completamente desligados dos sons do mundo exterior. E aquilo “que é inconscientemente reprimido compreende uma tal ‘zona de silêncio’, na vida emocional.” Na neurose “esta zona expande-­‐se e aprofunda-­‐se.” E o silêncio a que aqui se alude “não é meramente mudez; está bastante grávido com palavras não ditas. É a expressão correlacionada da repressão e mostra todas as características de compromisso entre a fuga e a condenação, que são peculiares à repressão. A psicanálise representa o primeiro grande avanço nesta zona do silêncio do ser individual.” Em face disto, a compulsão para confessar, como evento intermediário entre o silêncio e a expressão, serve uma corrente emocional que se esforça para a comunicação dos processos inconscientes. E se a "coisa mais importante na música não são as notas"(Beethoven), também “na análise o que está dito como tal, não é a coisa mais importante. Mais impor-­‐ tante, parece-­‐nos, é reconhecer que o nosso discurso esconde [verschweigt] e que o nosso silêncio trai [spricht].”(Reik, op. cit). Em suma, o silêncio “está sempre presente numa sessão de análise”, como nos diz Nasio, “e os seus efeitos são tão decisivos quanto os de uma palavra efectivamente pronunciada”. Assim, o efeito do processo de análise mostra o poder das palavra e o poder, largamente emocional, do silêncio. O episódio multifacetado do silêncio, muito

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Carel Van Der Heide apresenta,por exemplo, a noção de “blank silence”(silêncio em branco), relacionada com a oralidade, e mais prevalente em análises de pacientes regredidos cuja sintomatologia e transferência são dominados pelos resíduos do estádio de desenvolvimento libidinal. O blank silence seria “uma forma especial de cessação passageira, frequentemente recorrente, do discurso. Talvez seja melhor definida como uma regressão do ego, temporária e funcional, de natureza defensiva e indicativa de uma alteração considerável da relação de objecto dominante.” O psicanalista sustenta ainda, baseada num caso clínico descrito, que o blank silence tem uma grande proximidade com o sono, que é o protótipo de todas as defesas, tal como se evidencia pelo concomitante decréscimo de motilidade e a excitação do fim perceptivo do aparelho psíquico. (Heide, 1961).

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vivenciado no setting psicanalítico, deve ser encarado como uma oportunidade para examinar as suas nuances, e as possibilidades que encerra, sobretudo se não o virmos apenas à luz da ideia da resistência. Por outro lado, uma situação de não-­‐silêncio, como a que é caracterizada pela verbosidade, ou pelo fácil surfar sobre os assuntos pessoais, pode mascarar o silêncio sobre as questões verdadeiramente importantes para o sujeito, no contexto da sessão psicanalítica ou psicoterapêutica. Uma zona de silêncio pode ser originada por aquilo que é inconscientemente reprimido e, diferindo da situação de mudez, estar “grávida com palavras não ditas” Cabe ao analista ou psicoterapeuta conduzir com sensibilidade e atenção esta exploração catalizando aquilo que o discurso esconde e aquilo que o silêncio trai.

O SILÊNCIO DO TERAPEUTA COMO INTERVENÇÃO
“O
silêncio é a réplica insuportável” G. K. Cherterton “And the vision that was planted in my brain still remains Within the sounds of silence”

Simon & Garfunkel(“The Sound of Silence”, 1964 )

Em 1926, Thedor Reik propunha, numa palestra na Sociedade Psicanalítica de Viena, a discussão do silêncio do analista, do seu especial signiRicado na situação analítica, da sua avaliação emocional por parte do paciente, e do seu signiRicado latente, referindo que não tinha encontrado qualquer comentário digno de registo sobre o assunto na literatura analítica até então. Assim, e ao contrário do que acontece nas conversas normais e no contacto social em que existe uma alternância na posse da palavra e um evitamento de longos silêncios, o comportamento do analista é uma situação “impossível” no sentido convencional de comunicação (cai na categoria das “impossibilidades” características da situação analítica). O analista é alguém, tal como ele preconiza, que não tem medo do silêncio (Reik, op. cit.). E o que é especíBico deste silêncio do analista? O silencioso processo Para além do valor de uma atenção silenciosa, o que é verdadeiramente distintivo são os efeitos que o silêncio tem sobre o paciente e que lhe dão o seu sentido latente17. Não propondo um receituário, nem contemplando os casos atípicos (pacientes que, por exemplo, contra o silêncio do analista respondem com o seu próprio silêncio), ou as questões técnicas que especiRicamente lidam com a atitude do analista face às diferentes reacções do paciente, Reik conduz-­‐nos ao longo do silencioso processo oferecendo-­‐nos uma estrutura para a sua compreensão. Na esmagadora maioria dos casos, o silêncio do analista, sobretudo no início, é sentido como um interesse benevolente e tem um efeito benéRico, calmante. Mas o silêncio do psicanalista é muitas mais coisas para o 17 ”O paciente atribui a este silêncio um significado definitivo de acordo com seus sentimentos. Ele não admite para si mesmo que é simplesmente um comportamento natural e necessário por parte do analista, que deve ficar em silêncio para escutar com atenção” (Reik, op. cit.)

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paciente. O sinal de atenção calma, e o sinal de simpatia, derivados da atenção do analista, reforçam a percepção do efeito da conRiança dada ao paciente, que parece estimulá-­‐lo a expressar-­‐se livremente. Mas, este silêncio inicial por parte do analista ” não é apenas uma condição necessária para ser capaz de absorver o que o paciente diz. O analista ouve o dobro quando o seu paciente fala, ouve vozes inconscientes a entrar, o que é facilitado pelas suas próprias interrupções [inconscientes]. Foi pouco observado que, para o paciente, este efeito está ligada a um outro, que é o resguardar-­‐se parcialmente-­‐ [Abhaltung] do mundo externo. É comparável ao efeito de um abajour no sombreamento de uma luz que é muito brilhante. A premente proximidade da realidade recua. Este silêncio do analista garante o início de uma maneira calma e objectivadora de olhar as coisas” (Reik, op. cit.). Face a este, o paciente “entra nesta situação de livre expressão dos seus assuntos mais íntimos, que é única no nosso mundo cultural, vindo do mundo do silêncio”. E “(...)entra num mundo orientado de forma completamente diferente no qual a franqueza é o único valor. Assim, o silêncio do analista oferece a melhor possibilidade para o estabelecimento de comunicação. A situação lembra a da primeira infância em que a criança [pequena] ainda pode expressar seus sentimentos e impulsos sem impedimentos independentemente da sua natureza.” (Reik, op. cit.) Nesta fase, o silêncio que parece passivo tem, na verdade, uma natureza activa e um "valor terapêutico" (Saussure). Ele é avaliado inconscientemente como sinal de simpatia, e o paciente reage falando. Assim, quando o silêncio e a hesitação por parte do paciente ocorrem nesta fase, é geralmente -­‐-­‐ existem excepções-­‐-­‐ um sinal de resistência superficial, causada pelo facto do paciente ter de se orientar numa situação estranha e desconhecida. ” Geralmente esta resistência superRicial “comparável a um trovão distante, que anuncia a aproximação de uma tempestade” é rapidamente superada, apontando em breve o caminho para um nível mais signiRicativo subjacente (Reik, op. cit.). Entretanto, e pouco a pouco, neste processo, o silêncio do analista muda o seu signiRicado18. Lentamente neste processo, perante o continuado silêncio do terapeuta, o paciente volta à fala, acostumado que está a evitar as pausas desconfortáveis na conversa: “faz um esforço para falar de outras coisas insignificantes, e seguras. Mas o pensamento suprimido, que foi deixado de lado, retorna.” O analista calado, como se isso fosse a única coisa natural a fazer em tal situação, e indiferente ao embaraço não facilita que o paciente lhe peça agora ajuda. Por seu turno “ O paciente gostaria de falar de outra coisa, se qualquer outra coisa lhe ocorresse, ele até gostaria de permanecer em silêncio sobre outra coisa, se ele pudesse.” 19. Portanto, “Não é apenas o pensamento específico e a resistência contra a sua expressão que agora desempenha um papel no jogo de forças emocionais; é também o silêncio do analista. É este silêncio que

18 “Alguma coisa ocorre com o paciente que ele não quer contar, ou cuja narrativa é difícil para ele. Ele fala ainda de outras coisas, mas o que ele está a suprimir mantém-se a forçá-lo e apenas lhe permite que discuta outras coisas com dificuldade; agora ele está silencioso, como o analista. É como se o silêncio do analista se tivesse espalhado para ele, e ele tivesse infectado com este. A situação ainda não mostra a sua alegada impossibilidade, mas sim, pela primeira vez, o seu constrangimento. O silêncio continua” (Reik, op. cit.). 19 Fazendo aqui lembrar o espirituoso episódio com uma célebre actriz vienense do seu tempo, Josefine Gallmeyer, que consta terá dito ao seu companheiro de jantar, silenciosamente sentado com ela à mesa por mais de meia hora : “Vamos ficar calados sobre outro assunto!”(Reik, op. cit.)

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parece proibir falar após um pensamento perturbador, que logo silencia as observações sobre o clima maravilhoso, a estante, e o relógio na sala. O paciente capta, por meio deste silêncio, que a situação analítica é pouco adequada para este tipo de conversa [“small talk”em Inglês]). Aqui, agora, a força activa do silêncio surge uma segunda vez. Tem uma força que avança, o que impulsiona o paciente, que o empurra para um âmbito mais profundo do que ele tinha previsto inicialmente” (Reik, op. cit.). Para Reik a palavra falada tem um efeito reactivo e o próprio paciente é muitas vezes surpreendido “com o que ele diz, e muitas vezes diz coisas que ele não se atreveu a admitir para si mesmo”. Por sua vez o silêncio do analista vem reforçar o efeito reactivo da palavra e tem um efeito mais forte do que palavras.20 Agora o silêncio do analista muda de Rigura, ao dar provas de uma determinação de não falar , equivalente a “um permanecer mudo”, e torna-­‐se perturbador. “A ênfase psíquica parece estar deslocada: indica a mudez de uma pessoa que tem uma voz, e que, embora se pretenda ouvir alguma coisa dela, não fala.” Deste modo, o silêncio do analista desaRia o paciente a superar-­‐se a si mesmo, expressando aquilo que é diRícil de dizer. Neste contexto, a crescente impaciência sentida pelo paciente é uma resultante que o “empurra para a frente, fá-­‐lo dizer mais sobre os seus sintomas e características, a sua história -­‐ novas memórias chegam até ele “. Ou seja, para quebrar o silêncio do analista o paciente dá-­‐lhe mais daquilo que ele julga que o analista quer ouvir. E se a situação persiste, a tensão cresce21. Agora o paciente sente o silêncio persistente do analista como pura negação, e com a ansiedade intensa que o habita aquele silêncio, que se recusa a abrandar diante de tantas admissões, é vivido como uma perda de amor acompanhada de intensa culpa, escrúpulos de consciência ou temores de castração. A análise, através do silêncio continuado do analista, pode chegar assim a um ponto de tremenda tensão, acompanhada de crescente irritação por parte do paciente. A impressão causada pelo silêncio do analista suscita nele um medo vago e assume, inconscientemente, o carácter de punição; é “como se um sentimento mudo no paciente fosse, assim, apelado, que é uma forma que tem um efeito mais forte e mais directo do que qualquer discurso humano pode produzir”. Agora, com a continuação inconsciente das tendências agressivas e amarguradas (irritação, revolta, indignação, hostilidade), o paciente pode começar a desejar a morte do parceiro mudo ou a alimentar o pensamento de que ele poderia ser morto(desejos inconscientes de morte contra o analista). Um paciente geralmente expressa esta fantasia “dizendo que, nessas situações ele sente o analista a uma grande distância”. As duas mais importantes reacções do paciente ao prolongamento do silêncio do analista são, em suma: 1) rebelar-­se contra a

20 “A diferença entre o silêncio anterior do analista e aquele que agora se impõe ao paciente pode ser facilmente reconhecida. Só agora o paciente se torna consciente do facto que o analista permanece calado. (...) Por outras palavras, o paciente só se torna consciente do silêncio do analista como uma expressão emocional, quando a sua própria primeira resistência séria aparece. O significado que o silêncio do analista assume, do ponto de vista do paciente, é, portanto, claramente o resultado de um processo de projecção” (Reik, op. cit.). 21 “ Mas o analista cala-se, e a impaciência e o aborrecimento do paciente crescem. Ele sabe que se espera dele franqueza, mas não disse ele tudo? Se o silêncio continua o paciente vai lembrar-se que esqueceu algumas coisas, que distorceu ou relatou incompletamente alguns detalhes; a barreira da censura muda nele: agora diz coisas, face ao silêncio teimoso do analista, que até então reteve premeditadamente; ousa relatar coisas que anteriormente considerou ofensivas ou imorais.” (Reik, op. cit.).

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falta de sentimento por parte do analista, e =icar agressivo em relação ao analista ou a análise., e 2) reagir ao negro sentimento de culpa, que o silêncio desperta nele, com um novo reconhecimento dum impulso de pulsão; uma porção até então inconsciente de seu esforço psíquico vem à tona. (Reik, op cit). Ligando a reacção do paciente a um analista implacavelmente silencioso, na medida em que isto reproduz uma experiência de negação da infância, Reik conclui que este desenvolvimento traça "um retorno do sentimento que desempenhou um papel importante na relação do paciente a um objecto de amor -­‐ da ternura original à amargura sobre uma negação imaginada ou real22 A passagem de uma interpretação do silêncio para outra não é de forma alguma tão óbvia como pode parecer à primeira vista "(Reik, op. cit.). Para Zeligs (1961), à data desta sua publicação já lá vão cinquenta anos, “O papel que o silêncio do analista desempenha no processo psicanalítico e os significados múltiplos e afectos escondidos que emergem, quando esta prerrogativa básica do analista é cuidadosamente investigada à luz da actual psicologia do ego e teoria da técnica, ainda não foram sistematicamente formuladas.” Resta saber o que mudou entretanto. No mesmo ano, Arlow defende que o silêncio do analista “é apenas parte do conjunto geral de condições cuja Rinalidade primária é faciltar a comunicação, verbal ou outra, derivada tão completamente quanto possível das fontes de dentro do paciente. E todos os outros aspectos do silêncio do analista que são discutidos em ligação com a técnica são secundários a esta consideração e relativamente não-­‐essenciais”, na medida em que constituem maioritariamente interpretações da defesa. Ele examina ”as múltiplas variedades de silêncio encontradas na situação analítica do ponto de vista dos princípios actuais da técnica psicanalítica”, agrupando as experiências de silêncio e o seu signiRicado. No entanto, o autor centra-­‐se sobretudo na análise do silêncio do paciente pouco se detendo na análise do silêncio por parte do analista. (Arlow, 1961).Um ano depois, Lief testemunha por sua vez quão pouco tem sido escrito sobre o silêncio do terapeuta, referindo alguma estranheza pela situação na medida em que qualquer iniciado em psicoterapia ou psicanálise se debate imediatamente com as questões: “Quando é que eu falo?”; “Quando é que eu fico calado?”. Já anos antes Ferenczi trazia à baila este assunto ao salientar que era um problema permanente decidir “ quando alguém se deve calar e aguardar outras associações e até que ponto a continuação da manutenção do silêncio só resultaria em causar ao paciente sofrimento inútil”. Esta aRirmação pressupõe que o silêncio pode ser benéRico ou prejudicial, propondo-­‐se Lief a discutir este ponto nalgumas das situações, e os vários problemas técnicos enfrentados pelo psicoterapeuta que tem de lidar com estas situações (Lief, 1962).

22 O que parece interessante ainda destacar, nesta reactividade longitudinal do paciente ao silêncio do analista, é a emergência, ou espelhamento, da repetição abreviada de uma antiga experiência, que acciona o “retorno dos sentimentos, que desempenharam um papel importante na relação do paciente com um velho objecto de amor - indo da ternura original para a amargura sobre uma negação imaginada ou real.” E também aqui, precisamos de acautelar as interpretações dos variados silêncios do paciente, intimamente ligados à sua posição de “ambivalência inconsciente”.(Reik, op cit)

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Em 1967, Calogeras propõe-­‐se elucidar sobre o sentido do “silêncio” na situação de tratamento psicanalítico quando usado como um parâmetro técnico, e fornecer tanto dados clínicos como uma explicação teórica para o lidar com o silêncio do ponto de vista da psicologia do ego. Realiza uma abrangente sistematização sobre a abordagem do silêncio, considerando três períodos no tempo (1914-­‐1930, 1930-­‐1945, e 1945-­‐1967), fazendo sobressair a crescente soRisticação na elaboração sobre o silêncio nesta prática clínica. Todavia, ainda pouca informação aRlora sobre o silêncio do terapeuta. Neste aspecto, surgem apenas a alusão à recomendação de Ferenczi, segundo o qual, depois de terem sido esgotadas as medidas educacionais para encorajar a associação livre, o analista deve opor ao silêncio do paciente o seu próprio, criticado por alguns como “conselho de desespero”. Mais tarde, é reconhecido o mérito do silêncio do analista no caso da intervenção com “pacientes obstinados fálica e analmente orientados”. E depois, já no 3º período considerado, aparece a alusão ao uso do silêncio pelo analista que “pode utilizar muitos dos significados genéticos do seu próprio silêncio, a menos que tenha um insight sobre o seu significado”. Calogeras vem também chamar a atenção sobre o silêncio do analista enquanto resistência: A prerrogativa do analista pode ser objecto de utilização abusiva por uma série de razões. Descobriu-­‐se que a chamada "atitude de escuta" do analista pode ser um pronto indicador do estado de contra-­‐resistência e pela observação cuidadosa pode ajudar ou contribuir para lançar luz sobre o significado do silêncio do paciente. No entanto, muitas vezes a situação analítica está madura para o analista quebrar o silêncio, mas por causa de uma resistência dentro de si, ele permanece silencioso” (Calogeras, 1967). Brockbank parece convergir com esta ideia de Calogeras, ao assumir que os muito complexos fenómenos do silêncio não podem ser compreendidos independente ou exclusivamente a partir dos quadros de referência usados até então (as resistências intrapsíquicas inconscientes do paciente, e relação transaccional aqui-­‐e-­‐agora relacionada com o objecto, entre paciente e analista). E vem demonstrar que o “comportamento do analista, particularmente o seu silêncio, é muitas vezes um resultado da contratransferência, frequentemente racionalizada como incógnita analítica, neutralidade analítica, etc., e como tal tem sido insuficientemente tratada como um factor causal na significação do silêncio do paciente.” Ao tentar aperfeiçoar a compreensão do signiRicado e da Rinalidade do silêncio do analista, equaciona que este não é puramente uma questão de procedimento técnico, mas uma “resposta interpessoal dinâmica bem como uma manifestação dos processos intrapsíquicos do analista”. Por conseguinte, o uso prudente do silêncio pelo analista é entendido como uma das mais potentes ferramentas do encontro terapêutico do analista como paciente, o qual “pode ser um mais potente estímulo para as fantasias inconscientes do paciente do que qualquer interpretação verbal que se possa fazer. Em qualquer situação o seu silêncio pode ter qualquer número de significados 22

para o paciente e pode ser respondido através de uma raiva agressiva e zangada por um lado, ou por fantasias de transferência eróticas, agradáveis e positivas, por outro. Em qualquer destas situações o silêncio do analista pode ser em si uma interpretação com sentido considerável para o paciente.” (Brockbank , 1979). No entanto, adverte, numa “análise na qual existe muito silêncio, tanto da parte do paciente como do analista,23 pode tornar-­‐se difícil ou impossível saber a que interpretação está a reagir o paciente como resultado do silêncio do analista e das muitas vezes inadvertidas interpretações.” e chama a atenção para o uso excessivo do silêncio por parte do analista e as suas armadilhas. Neste caso, as raras palavras ganham maior carga (e efeito hipnótico) e podem, colocar o paciente num estado de hipersugestionabilidade, levando a uma espécie de contaminação destruidora da “neutralidade analítica” (Brockbank, 1970, cit. Brockbank, op. cit). Kurtz por seu turno, salienta como o uso silêncio pelo analista “pode crescer a partir de uma técnica auto-­‐consciente para uma manifestação altamente integrada do seu ser”, explorando as reacções variáveis do paciente aos vários silêncios do analista, aludindo à útil distinção que cabe fazer-­‐se entre os seus “silêncios flectidos” e “inflectidos”. Sendo que, os “ primeiros são uma parte da linguagem, muitas vezes, não menos precisos do que as comunicações verbais”. E os últimos, “como sugeriu Wittgenstein, apontam para o que não pode ser dito. Nesse sentido, o silêncio inflectido é um contentor do processo analítico, distinto do conteúdo, e irredutível”. Assim, os pacientes reagiriam aos silêncios flectidos como fariam com as verbalizações. “No entanto, os escritores sobre os fenómeno de silêncio tendem a falar da clareza "inquietante" que algumas pessoas apresentam em discernir os sentimentos não ditos dos seus analistas. Este uso de "inquietante" pode apenas manifestar a convicção de que o silêncio preserva eficazmente a privacidade do analista. É o anonimato do analista uma ficção que os pacientes conspiram para apoiar ou será que a maioria, conscientemente ou não, distingue o carácter por detrás da máscara profissional? (...)O que o paciente discerne da atitude do analista em relação a ele varia entre benevolência e desprezo. O valor de um silêncio empático atento tem sido observado por praticamente todos os escritores sobre o assunto, tal como a destrutividade de um silêncio odioso. (...) Confrontações odiosas do silêncio com o silêncio, quando não irremediavelmente prejudiciais podem prolongar ou reforçar o uso do silêncio como uma resistência.” Quanto ao silêncio inRlectido do analista “este é o cantus firmus24 contra o qual as motivações do paciente se desdobram(Kurtz, 1984). O silêncio relativo do analista sofre mudanças de sentido para o paciente à medida que o tratamento se desenrola mas, na opinião de Kurtz a percepção inicial do silêncio do analista como interesse benevolente nunca se perde. A apreensão e integração do analista como um objecto de cuidado está no núcleo da aliança de trabalho e é contra 23 “Um psicanalista sempre silencioso seria tão difícil de conceber como um analista que interpreta a toda a hora, a menos que o primeiro seja surdo-mudo e que o segundo seja surdo, tanto em relação a si como em relação ao outro, visto que não se poderia escutar-se a escutar o paciente.” (Carels, 1982) 24 Expressão latina que significa melodia fixa. O Cantus firmus é uma melodia, geralmente extraída do canto gregoriano, usada por compositores dos séculos XIV – XVII como base da composição polifónica e contra a qual as outras melodias são escritas em contraponto. Ou seja, era o uso de uma melodia já existente como base temática para um novo arranjo polifónico. A voz do "tenor" que deu o uso do termo cantus-firmus, não era a mesma voz cantada nas partituras dos tenores dos dias de hoje; mas o cantus-firmus era a voz mais grave da partitura, e que segurava a polifonia da música, usavase como pedal do arranjo, com notas longas e andamentos relativamente lentos; por isto o nome de canto fixo.

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este terreno que o paciente se esforça tanto para manter e desmantelar as suas defesas. E se Reik trata da evolução do tratamento como um desdobramento da resistência, com Kris (1956, cit. por Kurtz, op. cit.) somos lembrados que se os impulsos integradores não foram pelo menos igualmente fortes o projecto falha. Em 1964, Nacht vem -­‐-­‐ depois de Greenson, que em 1954 tinha aRirmado que a matriz da transferência era a relação precoce, e de Zeligs, em 1960, ao falar do alimento psíquico que constituem para o paciente as palavras e o silêncio do analista -­‐-­‐por sua vez, realçar o valor da relação primária mãe-­‐Rilho (ou relação fusional) na dinâmica da transferência, fazendo da comunicação não-­‐verbal e pré-­‐objectal um dos fundamentos da terapêutica psicanalítica. O silêncio do analista “não é uma meditação, é uma escuta, mas isto é insuRiciente”. Porque sendo um “silêncio laborioso”, para o qual “o seu aparelho psíquico é chamado a contribuir”, ele é o “equivalente, na vigília, do sono do analista, no qual ele se escuta escutar, enquanto na cena do discurso ouvido formam-­‐se as associações do analista, tempo prévio à formação e depois à formulação interpretativa “(Green, op. cit.). Num interessante relato de um trabalho analítico que decorreu ao longo de vários anos, junto de pacientes que apresentam um profundo e irredutível silêncio, duas psicanalistas de inspiração jungiana descrevem o reportório, usado ao limite, de respostas e técnicas. Nas suas conclusões baseadas nesta desaRiadora experiência referem que “uma das finalidades inconscientes do silêncio é uma tentativa desesperada de manter a integridade pessoal, uma reacção a muito anteriores experiências de confusão e trauma”. Descobrindo que o silêncio “é a arma mais poderosa do paciente para manter o analista de fora”, evidenciam também que as fronteiras entre as mentes inconscientes de duas pessoas " são especialmente fluidas durante os silêncios”. A sua indagação sobre o estado mental subjetivo do paciente silencioso levou a uma revelação sobre os delas próprios, através da evocação de poderosos sentimentos e atitudes, nos quais se incluem características como a intolerância e o evitamento de envolvimento emocional positivo; reacções contratransferenciais marcadas, incluindo fantasias destrutivas. Levantam a hipótese de que o silêncio profundo e prolongado é um produto de processos arquetípicos, e que o evitamento da potencial ligação ao analista surge como protector da integridade do self, mas também, paradoxalmente, ameaça a existência do self. O imperativo terapêutico consistiu em privilegiar o contacto, em vez de uma análise interpretativa. “Mas resistir ao silêncio às vezes é o melhor que podemos oferecer aos nossos pacientes, e, com a interpretação, pode lentamente transformar a sua força destrutiva.” (Fuller & Crowther, 1998). No encontro analítico, o silêncio e a interpretação do analista complementam-­‐se (tal como acontece com a palavra e o silêncio do analisando), e o analista faz o inconsciente falar além do discurso vazio e da razão 24

consciente, e nesse espaço transaccional onde os dois inconscientes comunicam, apela à vibração do seu inconsciente e sinaliza a vida. “O não-­‐dito do analista pode ser o silêncio da atenção Rlutuante25, silêncio povoado de palavras potenciais, de associações, de representações ou de afectos. Mas se ele é silêncio deserto, tarefa cega sonora, é a negação da escuta. O silêncio da escuta seria a marmita onde vão ser depositados os ingredientes produzidos pelo analisando e pelo analista q que vão constituir esse caldo que será mais tarde a interpretação.” (Carels, 1982).

O SILÊNCIO DO PACIENTE
“Pelos
espaços abertos do silêncio passa, indizível, a pulsão” António Coimbra de Matos (O silêncio na comunicação analítica, 1979) “O silêncio é o lugar do apagamento do manifesto de forma que possa revelar o latente” André Green (O silêncio do Psicanalista, 1979)

Que interesse tem falar do silêncio do analisando? Na qualidade de analisanda tenho bem presente a situação da inundação do espaço com palavras ou a do seu eclipse. Nesta situação analítica tal como na psicoterapêutica, se bem com diferenças26 , os silêncios dos pacientes acontecem e podem signiRicar resistência ou acolhimento ou elaboração ou amor ou tantas outras coisas. E se se trata de uma ocorrência, com diferentes ritmos e texturas, então não lhe podemos ser indiferentes, na medida em que é algo que, precisamente, acontece. Acontece estando o paciente consciente de que está lá para falar. E assim, no quadro do modelo psicanalítico, para o qual é relevante aquilo que é dito para além das palavras, é então importante tomar contacto com a zona ou os episódios de silêncio do paciente, descriminando-­‐os. Neste contexto familiarizamo-­‐nos com pacientes cujo contínuo discurso tem o sentido de não dizer precisamente as coisas mais importantes, como aquelas “redes através de cujas grandes malhas apenas as mais valiosas coisas escapam” (Reik, 1926). Neste sentido, “Ao silêncio de um paciente deve ser dada tanta atenção quanto às suas palavras. O silêncio não é necessariamente uma interrupção enigmática do fluxo de comunicação, mas uma parte integral do processo psicoterapêutico “(Weisman, 1955, citado por Blos, op. cit.). E este pode ocorrer em momentos específicos, de acordo com princípios psicodinâmicos bem definidos. O silêncio tem um significado próprio, que complementa o discurso. O seus motivos podem ser clarificados e vários tipos de silêncio podem ser diferenciados clinicamente” Blos(op. cit.).

25 Mas a atenção flutuante, que significa que não se privilegia nada, é para o analista, como coloca Carels, tão insustentável como a de tudo dizer ao analisando, como sublinhou J.L.Donnet. Segundo ele: "a interpretação feliz parece quase nada privilegiar e complementar o quase já dito, para relançar uma nova sequência” (Donnet, 1978 cit por Carels op. cit) 26 Em minha opinião, as diferenças, não desprezáveis, de uma e outra situação decorrem da componente espacial do setting, que coloca face-a-face

terapeuta e paciente. Assim sendo, do ponto de vista daquilo que a situação espacial e topográfica relativa acciona, há que ter em conta que estamos perante dois sujeitos que se olham nos olhos, que se observam mutuamente - um o psicoterapeuta que observa desinteressada mas vigilantemente as expressões, posturas e movimentos de um paciente sentado, outro, o paciente que olha e vigia, ou desvia o olhar, perante o psicoterapeuta que o encara. O paciente está de certo modo mais no aqui e agora do que na situação analítica do divã, perante o acolhimento visível, a presença atenta, e a atenção flutuante do psicoterapeuta que não o deixa de encarar, fazendo-o ter consciente do outro a quem dirige as suas palavras e também, talvez, o seu silêncio.

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Os signiBicados do silêncio do paciente no setting psicanalítico e a questão da sua abordagem
"O silêncio não tem nem significado nem valor a não ser que o extraiamos " Viderman (1979)

Se inicialmente o silêncio do paciente era olhado como se de um natural inimigo do sucesso terapêutico se tratasse, com o passar do tempo, a elaboração sobre o silêncio do paciente foi-­‐se soRisticando, passando a englobar outras leituras. Loewenstein, por exemplo, conclui que a verbalização e o discurso desempenham um papel essencial nos efeitos terapêuticos de ganho de insight, mas que não são os únicos factores a fazê-­‐lo. Arlow, que encara o silêncio durante o tratamento analítico como sendo “uma perturbação do ego de mais curta ou mais longa duração”, regista duas grandes categorias de silêncio que podem ser apreciadas: 1. Os silêncios que servem primariamente a função de defesa27 ; e 2. Os silêncios que servem primariamente a função de descarga (problema segundo Arlow menos explorado) 28 (Arlow,-­‐1961). Ainda em 1961, Greenson diferenciava duas grandes categorias de silêncio: o silêncio como resistência, mais frequente na prática psicanalítica e que mostra que o paciente não tem vontade consciente ou inconsciente de verbalizar, e o silêncio como uma comunicação. (Greenson, 1961). Assim, “o silêncio que ocorre na psicoterapia pode ser abordado de várias maneiras. Ao invés de tratar silêncio como um empecilho ou obstáculo para a obtenção do material verbal, o estudo de um período de silêncio pode revelar muito sobre um paciente. As várias maneiras pelas quais os autores têm abordado este problema mostram-­‐nos que existem de facto muitas camadas de compreensão. Cada camada tem algo para contribuir para o entendimento de um evento particular e paciente. Por outras palavras, o silêncio é um evento sobredeterminado regido pelo princípio do funcionamento múltiplo (Waelder, 1936, citado por Blos, op. cit.).” 29Winnicott por seu turno, estabelece a ligação entre a capacidade de estar só -­‐-­‐ capacidade a ser

27 Estes primeiros, cobrindo uma vasta gama de fenómenos clínicos de diferentes tipos de estrutura, associados a diferentes conflitos que parecem “demonstrar um tipo muito extremo de repressão, ou uma rendição mais branda do ego, em termos de autonomia, quando a repressão enquanto defesa falha, e os derivados dos impulsos que entram na consciência podem ser repelidos através das defesas de projecção, isolamento e negação”. Aqui, quando o analista intervém, dirigindo a atenção do paciente para estas defesas, segue-se um silêncio de menor ou maior duração da parte deste. E se isto pode ser visto como representando um impedimento , demonstra também “como a resistência inconsciente se pode transformar numa relutância consciente para falar”. (Arlow,-1961) 28 Aqui ,nesta segunda categoria, a “forma muito intensa e exagerada mediante a qual as relações de objecto são reactivadas, repetidas e revividas na transferência servem para dramatizar o significado da comunicação através do silêncio como através da fala”(Arlow,-1961). 29 Sobre esta questão é pertinente ver a achega técnica de Arlow: “Uma atenção especial deve ser dada à configuração total do silêncio na transferência, ou seja, se um padrão específico ou evento significativo está a ser reproduzido. Em tais circunstâncias, um silêncio pode representar uma expressão clássica de transferência, uma comunicação relativa à experiência em que o silêncio era uma componente essencial do evento. Uma interpretação que possa correlacionar tal silêncio a uma relação específica ou a algum evento preciso no passado do indivíduo é geralmente mais eficaz. Finalmente, há aqueles silêncios de pacientes que devem ser respeitados, silêncios que representam um período durante o qual o paciente se esforça para manter o controle sobre os seus sentimentos ou para reestabelecer um sentido de auto-estima depois de alguma lembrança pelo paciente ou por alguma intervenção do terapeuta que pode ter forjado violência no narcisismo do paciente. Padrões especiais de silêncio, como as breves interrupções de comunicação que servem como barreiras de isolamento entre duas diferentes tendências de pensamento, naturalmente, devem ser tratados como manifestações específicas do processo defensivo no seu próprio contexto.” (Arlow, 1961).

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desenvolvida pelo indivíduo o partir do ambiente que o cerca ao longo de seu desenvolvimento emocional e que implica um estar só na presença de alguém-­‐-­‐ e o silêncio, a par de uma reRlexão que vem positivar ambos30. Seja um silêncio defensivo ou não, “ou mescla tecida de resistências e pulsões”, o discurso do paciente “realça em forma, orientação e significado pelo pontuar sintáctico do silêncio. São, de facto, os retoques do silêncio -­‐-­‐absoluto ou relativo-­‐-­‐ que, modulando-­‐lhe o tom, a intensidade e mesmo o timbre, lhe proporcionam a dimensão artística; desde logo, profundamente humana e peculiarmente individual” (Coimbra de Matos, (1979] 2001). O silêncio gélido do paciente, num profundo movimento regressivo, num estado de ausência de conRlito e de existência de carência, pode ser manifestar “a sua expectativa, desejosa, do calor maternal (ou da “substância”, como Balint coloca) que o analista possa, porventura, dispensar-­‐lhe” (Coimbra de Matos, op. cit.). Trata-­‐se ali do momento de restauração da “conRiança básica” (Erickson) em que se evidencia, na óptica de Nacht, a necessidade da “presença” do analista. Analista que aqui desempenha o papel de objecto funcional, numa nova relação, construtiva, estruturante e reparadora da deRiciência narcísica. O silêncio do paciente no decurso da sessão pode indicar e signiRicar o seu processamento da elaboração psíquica, competindo ao analista ter a perícia da escuta e a “quietude na contratransferência” para reconhecê-­‐lo e não interferir. Pode evidenciar a sua posição de guarda, na qual ”a transferência de afectos e emoções edipianos desempenha a função de uma relação defensiva: de resistência a uma necessária regressão, com aproximação e explicitação no processo transferencial, da genuína relação de objecto” (Coimbra de Matos, op. cit.). Ao falar do silêncio do analisando, fala-­‐se na maioria das vezes do aspecto da resistência. Zarrouati considera que esse modo de silêncio é a interrupção da palavra, e existem muitos outros silêncios da parte do analisando que merecem consideração. O silêncio do analisando diz “ é o silêncio de alguém que está lá para falar”. O silêncio do paciente, num contexto de cura, é bem diferente do de uma conversa social, “torna-­‐se imbuído de uma espécie de pureza, que contorna a angústia do abismo”, pode ser “o medo de pensar perante o outro que sidera o pensamento, e nada resta senão o vazio. ‘Não vem nada’”. Alguns alongam-­‐se e calam-­‐se: “De que silêncio se calam eles?”, e o que se passa com os adultos “que não têm mais palavras para abordar os seus afectos”? O silêncio do analisando “é muitas vezes um tempo de pontuação como numa sinfonia, numa língua. O silêncio dá alívio à palavra, e muitas vezes logo que se diz uma palavra, segue-­‐se o silêncio. A palavra é acto”. (Zarrouati, 2010) Em suma, o analista ou psicoterapeuta munido da “neutralidade acolhedora” (Freud) , próxima da noção de “impavidez”, ou de ausência de medo, (Maurice Bouvet), investido da função de Eu auxiliar, aparece disposto a

30. “A capacidade de um indivíduo de estar só é, para Winnicott ([1958]1983), um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional e

clinicamente pode se representar por uma fase de silêncio ou uma sessão silenciosa. Tal capacidade é considerada pelo autor como uma conquista para o paciente e não uma resistência como inicialmente pensava a psicanálise freudiana. Segundo esta consideração, podemos observar uma positivação do estar só, até então visto com maus olhos por diversos campos de saber, que geralmente estabelecem uma aproximação entre o estar só e o isolamento social, a solidão e a sensação de não-pertencimento e de inadequação; e pela própria psicanálise, como já dissemos, que o considerava basicamente como um sinal de resistência a ser interpretado e combatido”(Padrão, 2009)

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estabelecer uma “aliança de trabalho” (Ralph Greenson), tendo em vista alimentar empaticamente a relação que se estabelece, no sentido de um processo de conhecimento afectivo e não de envolvimento contratransferencial. (Coimbra de Matos, op cit) O silêncio do paciente não é somente uma resistência ao processo analítico e ao cumprimento da regra fundamental da associação livre (Freud) e manobra defenso-­‐adaptativa (Anna Freud) é uma forma de expressão comunicante, numa linguagem mais próxima da pulsão e do seu representante afectivo, é um interegno do diálogo que o faz virar para o interior na acção de se interrogar, meditar e elaborar sobre o que somos, e não somos, entre os outros. Em síntese, cabe ao analista ou ao psicoterapeuta, munido de empatia e dotado de sensibilidade31, desenvolver a capacidade de entender aquilo a que Coimbra de Matos chama de “murmúrio” do silêncio do paciente, sintonizando o seu inconsciente com o inconsciente do analisado, sintonia produtora de uma “percepção articulante de sentido”, na base da interpretação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS • Algures na comunicação existem momentos e episódios de silêncio, navegando aquém ou além das palavras, com diferentes cambiantes e sentidos. Entendo que o silêncio não se pode analisar descontextualizadamente, e sem tomar em consideração as palavras (ditas antes, ou a seguir), e os aspectos não verbais, como sejam a postura corporal (tensão, inquietude ou sua ausência), a respiração (calma ou ofegante), os movimentos (tamborilar dos dedos), o olhar (direcção do olhar, movimentos oculares, brilho dos olhos, ou a sua ausência). • Tal como não existe música sem pausas, não existe som, nem comunicação sem silêncio (e vice versa), pois é este que veicula uma parte signiRicativa do conteúdo emocional a par com todo o remanescente não-­‐verbal. Marginalizado pelas teorias da comunicação que privilegiaram o material verbal, o silêncio delimita uma zona ímpar de equívoco, e porta uma polaridade de sentido que faz com que o outro sinta o constrangimento ou a comunhão-­‐ especial situação em que nenhuma palavra precisa ser dita, bastando um olhar, o murmúrio da respiração ou o bater do coração para que seja sentido um entendimento. Associado aos outros conteúdos, ou indo contra estes, numa dança de antagonismo e de cumplicidade, de avanço e de recuo, o silêncio trás à tona, mesmo que sombreada, uma componente emocional. É também ele “um fogo que arde sem se ver”.Ou um gelo.

31 “Nada pode substituir a sensibilidade do terapeuta nem a sua resposta empática à concatenação de influências que se desdobra em qualquer momento na transferência. No entanto, uma revisão cuidadosa dos eventos que antecedem o silêncio e sua avaliação adequada do ponto de vista em que a relação funcional do ego está primariamente envolvida pode ser útil”. (Arlow, 1961).

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• A empatia é um dos principais dispositivos que podemos dispor para compreender a idiossincrasia dos silêncios do outro como que se da leitura falível de uma pauta de tratasse. Dispositivo infra-­‐verbal, o silêncio tapa, ou expõe e destapa, conteúdos não-­‐ditos, sabidos ou não-­‐sabidos, inaudíveis e nunca ouvidos. • Paradoxalmente, implicando o silêncio a ausência de sonoridade, também o excesso de som, e o excesso de palavras parece ser um fogo de artiRício encobridor de um vazio, ou de um silêncio profundo povoado de conteúdos indizíveis, irrepresentáveis, de um inominável, de um não-­‐dito. Por outras palavras, o silêncio remete-­‐nos para o visceral, visto que o que verdadeiramente importa nos discursos, não está debaixo do holofote. E habita assim uma zona de sombra, alimentada por desejos reprimidos, impulsos indizíveis, fantasias e ressentimentos, e contempla uma ausência, presente nele e por detrás dele, denunciando territórios que evitamos pisar. É, neste sentido, uma abertura para o inconsciente. • O silêncio do paciente pode ser também uma comporta, uma contenção que não deixa Rluir a criatividade e a essência.Mas perde-­‐se compreensão dinâmica, e a mudança, se só o virmos como um empecilho. E o silêncio assegura também uma melodia importante no registo das sessões captada pelo terapeuta através de uma atenção Rlutuante, que vagueia enquanto o paciente associa, esperando algo que faz (mais) sentido, escutando o inconsciente comum entre paciente e terapeuta (Nasio). É necessário o desanuviamento do silêncio, enquanto sinal de bloqueio, de fazer emergir a voz e diluir o nó. Desembargar a voz. • E o silêncio do psicoterapeuta/psicanalista é bem mais do que uma técnica unilateral de forçar a fala e de acesso ao inconsciente do paciente. É munido de sensibilidade e de acutilância, tanto no acolhimento, como na alternância de silêncio e de palavras que partilha. Neste silêncio do psicanalista e do psicoterapeuta, capazes de escutarem com a terceira orelha(Reik) e sem medo do silêncio, convive o assumir que o que é dito não é o mais importante, e uma atitude investigativa de detectar o que o discurso esconde e o que o silêncio revela. Silêncio habitado por uma escuta laboriosa, permeável a questões que se sucedem... Como é a cadência de pausas deste paciente?, Como respira?, Que silêncio é este agora?, Quando é que o seu falar equivale a não dizer nada ou a omitir tudo? (a silenciar-­se sobre o mais importante). Escuta laboriosa que permitirá ao terapeuta ouvir o dobro do que o paciente fala, na expressão de Reik. • Se para Freud o silêncio, simples resistência, não tinha uma função positiva em si, ao longo do tempo foi adquirindo essa dimensão positiva. Para lá de resistência, o silêncio é também comunicação.É um fenómeno que tanto impossibilita como possibilita a comunicação.Por outras palavras, é muito mais do que fenómeno de resistência. E é assim um portal para o inconsciente -­‐-­‐ abertura ao latente, acesso à dimensão do conRlito, e à essência da identidade, e à renovação pessoal. 29

• O silêncio tomado como pedra angular da mudança terapêutica, como receptáculo e lugar de gestação, onde os signiRicantes podem mudar de peso e de forma, as linhas de força adoptar uma outra direcção, e os nós desfazerem-­‐se, pode, assim, e de forma bem mais positiva, ser encarado como um espaço potencial de criação e um agente de criatividade(Carels). • A relevância de uma nova compreensão do impacto e do valor do silêncio (nosso e do outro) reveste-­‐se da maior importância na prática clínica psicanalítica e psicoterapêutica contemporânea, até porque esta é uma situação particular -­‐-­‐ artiRicial, ou “impossível”-­‐-­‐de comunicação, onde o paciente está lá para falar, e não obstante se queda frequentemente em silêncio, e o psicanalista -­‐ou o psicoterapeuta-­‐ é alguém que está lá para escutar, sendo que simultaneamente é alguém que tem uma voz. E deve estimular um pensamento sobre uma nova forma de agir no encontro analítico e psicoterapêutico, e suscitar uma nova posição do terapeuta e uma nova relação transferencial. • Finalmente, sustento que sem silêncio não há sentido, tal como não existe valor de ritmo, sem acolhimento total das noções de lentidão, rapidez, ou paragem e recomeço.

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Referências BibliográRicas
Arlow,
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